Wanda Engel
Por WandaEngel -
Wanda Engel*
A sede de destruição do atual governo não será saciada tão cedo. Agora é a vez da política destinada a promover a superação da pobreza, construída por diferentes governos e reconhecida internacionalmente, que terá sua pena de morte decretada com a aprovação da Medida Provisória que cria o Auxílio Brasil.
Além de acabar com o Bolsa Família, extensão e aperfeiçoamento da Rede de Proteção Social, implantada em nível federal da união do Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e Agente Jovem, o novo Auxílio Brasil não será apenas uma mudança de nome. Destruirá também princípios e estruturas, frutos de importante evolução histórica.
A institucionalização da política de assistência, iniciada com a LBA (a cargo das primeiras-damas), com a Constituição de 88 passou a ser considerada direito do cidadão e dever do Estado. Depois, a LOAS propôs a estruturação de um Sistema Único de Assistência (SUAS), definindo os papéis de cada ente federativo.
A partir de uma evolução conceitual, a pobreza foi caracterizada como um fenômeno não natural, de caráter multidimensional (aspectos econômicos, humanos, sociais e até subjetivos), e se identificou a família (e não o indivíduo), como unidade básica para sua produção e reprodução, bem como para sua superação.
Assim, uma política pública, voltada para a superação da pobreza, deveria partir do diagnóstico da situação de cada família, que permitisse a identificação de demandas específicas e a oferta de serviços adequados, incluindo a garantia de uma renda mínima, políticas de desenvolvimento humano e de geração de renda.
Este conjunto orgânico de programas deveria ter um caráter permanente, embora se esperasse que os beneficiários pudessem se desligar, quando atingissem, efetivamente, a inclusão produtiva.
O instrumento básico, tanto para o acesso a estes programas, quanto para o acompanhamento do processo de desenvolvimento das famílias, deveria ser um Cadastro Único (CadÚnico).
Criado em 2000 pelo governo Fernando Henrique, aperfeiçoado e expandido nos governos Lula e Dilma, o CadÚnico foi o que viabilizou a integração dos programas da Rede de Proteção Social, que deram origem ao Bolsa Família.
Desde sua criação, o CadÚnico foi uma responsabilidade dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) dos municípios, que compõem o SUAS, e que estão presentes nas áreas mais pobres dos 5.568 municípios brasileiros.
As desastrosas consequências sanitárias, econômicas e sociais, advindas da pandemia do Coronavírus, acabaram por definir a necessidade da criação de um Auxílio Emergencial. Em função desta contingência, a iniciativa baseou-se no indivíduo e utilizou um aplicativo do governo federal para inscrição dos beneficiários, ignorando o SUAS e o papel dos CRAS municipais, na gestão do CadÚnico.
Em termos de foco, foi um desastre. Cadastraram-se não pobres e não se cadastraram os “pobres dos pobres”. Foram muitos milhões de reais desviados da verdadeira função do programa.
Surge agora o Auxílio Brasil, que apesar de não ser mais emergencial, só está garantido até 2022. O cadastramento das famílias passa a ser uma responsabilidade do Governo Federal. Sua função será apenas a de transferir renda, sem a engenharia necessária à oferta de condições para que uma família possa superar sua situação de pobreza.
Na verdade, a crença é a de que a pobreza seja um fenômeno natural, e, portanto, insuperável, e que a simples distribuição de renda possa permitir uma sobrevida indigente para os cerca de 50 milhões de pobres brasileiros, mas principalmente sirva para garantir que este exército de miseráveis possa votar, em função desta benesse.
*Ministra de Estado de Assistência Social do governo Fernando Henrique responsável pela implantação do CadÚnico
Por WandaEngel -
Em 2010, escrevi um artigo sobre a evasão escolar e seus efeitos humanos, sociais e econômicos. Utilizava a metáfora de uma bomba relógio, para caracterizar um problema que se avolumava e que poderia explodir a qualquer momento. Naquela ocasião, não dispunha de dados capazes de dimensionar, com clareza, suas múltiplas consequências.
O recente estudo, coordenado por Ricardo Paes de Barros, veio preencher esta lacuna, revelando dados aterradores sobre a questão.
Para início de conversa, constatou-se que dos 3,3 milhões de jovens brasileiros de 16 anos, 17,5% (575 mil) não deverão concluir o Ensino Médio. Trata-se, entretanto, da média nacional, o que esconde profunda desigualdade, também neste tema, com maiores índices ocorrendo no Pará (29 %) e menores no DF (7 %).
De acordo com este estudo, a evasão gera uma multiplicidade de resultados, tanto no âmbito pessoal, incluindo empregabilidade e renda, qualidade de vida e longevidade, quanto no social, afetando a segurança pública e o próprio crescimento econômico. Tudo isto gerando um enorme gasto para o país.
Os dados da pesquisa mostram que os não concluintes do Ensino Médio ganham de 20% a 25% menos do que aqueles que o completam, e têm menos acesso a ocupações formais. Além disto, perdem, em média, 4 anos de vida, em relação aos seus colegas que não se evadem.
No âmbito da segurança pública, o estudo avalia que, a uma queda de 1% da evasão escolar, pode corresponder um decréscimo de 550 homicídios anuais. Assim sendo, se conseguíssemos fazer com que os 17,5% concluíssem sua educação básica, poderíamos evitar, a cada ano, 10 mil homicídios, o que representaria um não gasto anual de R$ 26 bilhões, quase um Bolsa Família (R$ 30 bilhões).
A mais impressionante conclusão é a de que o custo anual da evasão, por jovem, pode chegar a R$372 mil, o que corresponderia a dez vezes o PIB per capita brasileiro (R$ 32 mil), e a quatro vezes o que investimos em toda a educação básica de um estudante (R$90 mil).
Finalmente, o estudo estima em 214 bilhões o custo total da evasão por ano, ou seja, quase 3% do PIB nacional em 2017 (R$6,6 trilhões).
A situação tende a se agravar, em tempos de Covid. O histórico de outras pandemias, de desastres naturais, ou de crises econômicos ou sociais mostra que o abandono escolar cresce assustadoramente nestes períodos. Esta tendência é ratificada por um pesquisa do Conselho Nacional da Juventude (CONJUVE) – “Juventudes e Pandemia do Coronavirus”- indicando que 28 % dos jovens entre 15 e 17 anos pensavam em evadir-se e 49% em desistir do ENEM.
A má notícia, portanto, é que esta bomba relógio está prestes a explodir! Trata-se de um momento crucial em que o país precisa se reorganizar para evitar a hecatombe.
Em primeiro lugar, precisaríamos estruturar, em cada território, uma força tarefa, incluindo, além do sistema educacional, as áreas de assistência, com seus Centros de Referência de Assistência Social e Conselhos Tutelares (lembrando que desde 2016 a escolaridade é obrigatória até os 17 anos), bem como os agentes comunitários de saúde e as organizações locais, para um “mutirão de busca ativa” dos alunos em risco de não retornarem às escolas. Temos de evitar a evasão a qualquer custo.
Se tivermos sucesso nesta empreitada, restará uma pergunta crucial: Como mantê-los nos “bancos escolares”?
Não podemos esquecer que, em muitos casos, suas famílias perderam as fontes de renda, mergulhando na extrema pobreza e que eles estão sendo instados a dar sua contribuição financeira. Nesta situação, é preciso reforçar uma rede de proteção social, voltada especificamente para estes jovens.
Assim, as atuais propostas de renda mínima necessitariam incluir uma nova modalidade, focada na juventude pobre do país.
É preciso lembrar que o Bolsa Família já estendeu o benefício para o grupo familiar destes jovens, mas os recursos são destinados às mães. Esta nova modalidade de renda mínima deveria ter como funções, além de manter o jovem na escola, oferecer uma oportunidade de transição entre a educação e o trabalho.
Assim, dentro da lógica das transferências condicionadas, uma das condicionalidades poderia ser sua atuação na própria escola ou na comunidade, na função de “agente jovem de desenvolvimento social”. O Brasil já teve, duas décadas atrás, uma excelente experiência neste sentido, realizada em parceria com o empresariado local.
Na sequência, estes jovens deveriam ter acesso a programas de aprendizagem, baseados na Lei do Aprendiz, que representariam uma oportunidade ímpar de acesso ao mercado formal de trabalho. A partir daí, poderiam prosseguir seus estudos em nível universitário, alcançar o primeiro emprego ou tornar-se um empreendedor, com acesso a crédito e apoio técnico.
Esta proposta demandaria o estabelecimento de parcerias multissetoriais (alô empresariado!), planejamento colaborativo, estratégias intersetoriais de atuação, governança descentralizada, gestão voltada para resultados, enfim, uma nova abordagem, capaz de enfrentar este complexo problema humano, social e econômico. Enfim, as evidências já estão em cima da mesa, mostrando que a bomba relógio já está explodindo. Podemos, mais uma vez, adotar uma atitude negacionista, ou arregaçar as mangas, em uma ação conjunta, coordenada e comprometida com metas e resultados. O futuro nos julgará!
Por WandaEngel -
Em maio, no “Mês de Maria”, é comemorado o “Mês do Assistente Social”, coincidentemente, uma profissão majoritariamente feminina e dedicada à proteção dos mais vulneráveis.
De forma geral, o mês do assistente social costuma ser comemorado apenas entre os pares. A sociedade em geral não tem ideia da enorme importância deste profissional, principalmente em função de seu alto grau de invisibilidade.
Apesar do aumento de consciência sobre nossos inaceitáveis níveis de pobreza e desigualdade, escancarados pela pandemia, poucos se dão conta de que o profissional diretamente responsável por reverter esta situação é justamente o assistente social.
O desejável seria que as políticas públicas de educação, saúde, habitação, urbanismo, trabalho e renda, além de esporte, cultura e lazer, justiça e segurança pública, apesar de seu caráter universal, priorizassem os grupos mais vulneráveis. Mas não podemos esquecer que compete à política de assistência atuar diretamente no processo de proteção e promoção dessas famílias, visando à superação da pobreza e da vulnerabilidade.
Para cumprir este papel, a assistência precisa ser necessariamente intersetorial, articulando as demais políticas públicas, em relação a um dado território. Além disto, necessita promover estratégias colaborativas, que integrem a atuação de governos em diferentes níveis, organizações sociais e setor privado. Isto sem falar nos “poderes paralelos”, de traficantes e/ou milicianos, que se impõem nestes territórios. Missão extremamente desafiadora!
No enfrentamento de desafios históricos, este profissional esteve à frente da luta pela institucionalização da proteção como direito (Constituição de 1988), da criação de uma legislação própria (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), e de um Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
O SUAS, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS), normatizou o setor, definindo um novo modelo de gestão (descentralizado e participativo) e organizando os serviços socioassistenciais no país. Ele articula os recursos e esforços dos três níveis de governo para a execução e financiamento da Política Nacional de Assistência Social (PNAS).
No SUAS, os serviços, programas e projetos estão organizados por níveis – Proteção Social Básica e Proteção Social Especial – executados, respectivamente, pelos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS).
Nos CRAS é feito o atendimento às famílias para o diagnóstico da situação, elaboração de um plano de desenvolvimento familiar e encaminhamento para serviços específicos. No CREAS são tratadas questões ligadas a violações de direitos, bem como o atendimento às a vítimas de abuso e exploração sexual, violência doméstica, trabalho infantil, usuários de drogas e pessoas em situação de rua, dentre outras. Dureza!
Para este atendimento, os profissionais necessitariam contar com a chamada “retaguarda” (abrigos, repúblicas, centros de atendimento dia, aluguel social, família acolhedora, dentre outras) muitas vezes inexistente. Por outro lado, o encaminhamento para a rede de educação, saúde, trabalho e renda ou sistema judiciário depende da oferta de atendimento prioritário para esta população, nem sempre efetivada.
Na falta de instrumentos para a proteção e promoção das famílias, cresce um sentimento de impotência. Além disto, o cotidiano deste profissional é marcado pela violência, típica das comunidades onde atua. Este contexto acaba por afetar, muitas vezes, sua própria saúde.
Vale ressaltar que, no contexto atual da pandemia, o assistente social, em contato direto com os afetados pelo vírus, tem sido o grande articulador entre as demandas das comunidades e as ofertas de apoio, oriundas de iniciativas públicas e privadas. Assim como acontece com os demais profissionais de saúde, que atuam nessa pandemia, há registros de mortes de assistentes sociais em decorrência do coronavírus.
Nem a importância crucial de sua função, nem as dificuldades de seu exercício, se refletem no salário médio do assistente social. Segundo dados do Guia de Profissões e Salários da Catho, trata-se de um dos mais baixos do Brasil: apenas R$ 2.425, ou seja, quase sete vezes menor do que a média salarial do funcionalismo do judiciário federal (R$ 16 mil).
Apesar de vir sendo constatada a importância do SUAS, dos benefícios sociais, como o Bolsa Família, e do Cadastro Único; apesar de se ter evidenciado o papel fundamental da rede de CRAS e CREAS, no contato direto com as famílias; apesar de se ter revelado o valor da experiência acumulada pelo setor, na oferta de uma rede de proteção e promoção para os mais pobres; enfim, apesar de todos os avanços conquistados pela política de assistência, ela e seus profissionais continuam invisíveis.
Ninguém “bate panelas” pelo o assistente social, reconhecendo a importância sua atuação, neste momento tão difícil para todos, mas especialmente para os mais pobres.
Nas inumeráveis “mesas redondas” e “lives” sobre a pandemia e suas consequências para os vulneráveis, podemos encontrar médicos, educadores, economistas, urbanistas, políticos, ambientalistas, sociólogos, antropólogos e jornalistas, mas raramente assistentes sociais.
Se é verdade que queremos realmente, como sociedade, diminuir a pobreza e a desigualdade, devemos valorizar a política de assistência social, destinando recursos técnicos e financeiros, além de bons gestores para esta área. Devemos ouvir, apoiar e reconhecer seus profissionais, especialmente por meio de salários dignos. Em resumo, urge tirar a assistência e o assistente social da inadmissível situação de invisibilidade.
Por WandaEngel -
Muito já se falou sobre as consequências da pandemia nos grupos mais vulneráveis. Isto porque, apesar do caráter “democrático” do vírus, já constatamos que suas consequências, incluindo o grau morbidade, afetam mais cruelmente os grupos mais pobres e vulneráveis.
Aliás, um dos efeitos do vírus está sendo o de desvendar as condições de vida destes grupos que, até então, pareciam ser invisíveis ao olhar da sociedade em geral.
Tais condições de vida incluem o desemprego, o subemprego ou a informalidade e, consequentemente, uma renda que não lhes garante sequer a própria subsistência, além da falta de acesso à previdência social.
Vivendo em conglomerados urbanos densamente povoados, famílias numerosas habitam casas minúsculas, húmidas, sem ventilação, sem saneamento (água e esgoto), sem vias de acesso carroçáveis, nem praças públicas.
Sujeitos a um transporte coletivo precário e de péssima qualidade, vivem o horror da violência cotidiana e da exploração econômica (água, gás, transporte e tecnologia), exercida pelo poder local: tráfico de drogas ou milicianos.
Têm acesso a uma educação de baixa qualidade, em escolas carentes de infraestrutura, inclusive tecnológica. Seus professores e gestores, mal formados, sofrem, em geral, de problemas idênticos a de seus alunos e familiares.
A eles é oferecido um serviço de saúde pública deficitário, muitas vezes sucateado por gestões corruptas ou incompetentes.
É neste contexto multidimensional de carências que o vírus chega, “arrebentando”!
Sem condições reais de isolamento, e sem contar com saneamento básico, acelera-se o contágio. Seguem-se as dificuldades de acesso a hospitais, a testes, a respiradores, e a leitos de UTI. Multiplicam-se os óbitos, e os desafios para sepultar os entes queridos.
No campo econômico, morrem os empregos, minguam as oportunidades de trabalho e renda, ressurge a fome, aprofunda-se a miséria.
Por outro lado, o fechamento das escolas e a dificuldade que têm os sistemas públicos de implantar o ensino remoto, somado `as possíveis consequências socioemocionais da quarentena, tanto para professores quanto para alunos (perdas, violência doméstica, falta de dinheiro), atingem mais intensamente as escolas públicas, aumentando o fosso da desigualdade social.
Por todos estes motivos, torna-se fundamental agirmos na quarentena, para mitigar seus danos e planejarmos efetivamente o “day after” para as áreas de saúde, assistência e educação.
Na saúde, seria essencial priorizar o reforço e o aperfeiçoamento do SUS, este extraordinário bem público existente no Brasil e em apenas cinco outros países no mundo (Canadá, Dinamarca, Suécia, Espanha e Portugal).
Haveria também que reforçar o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e consolidar nossa rede de proteção social, especialmente através do Bolsa Família. O CadÚnico deveria ser o instrumento básico para transferência de renda, com a inclusão dos “barrados no mercado formal”: empregados informais e temporários, trabalhadores por conta própria e desempregados.
Interessante constatar como na pandemia reforçou-se a importância da existência de redes de proteção informal, tanto entre os pobres, com a atuação de organizações locais, quanto entre as diferentes classes sociais, através do voluntariado e do investimento social privado (só o Itaú disponibilizou, com a urgência necessária, 1 Bi).
Enquanto o governo patinava no processo de prestação da ajuda monetária de R$ 600, exigindo o CPF do beneficiário, a rede informal já estava a postos, nas áreas mais pobres, para enfrentar as consequências do Covid. Aliás, gostaria de entender por que o CPF, que deveria ser o número básico de identificação para as áreas econômica e social, é suspenso no caso de o portador não ter votado!!!!
Na área da educação, seria fundamental construir um novo calendário escolar; planejar o retorno, incluindo a realização de um teste diagnóstico para o atendimento às diferenças de aprendizagem; criar estratégias de apoio socioemocional para alunos, professores e famílias, além de implantar medidas de segurança sanitária. As estratégias do retorno às aulas deveriam ser intersetoriais, incluindo necessariamente as áreas de educação, assistência e saúde, além de cultura, esporte e lazer.
A mais importante proposta para este day after seria, entretanto, uma ação intencional e sistemática, dedicada ao fortalecimento de valores como igualdade, respeito ao diferente, solidariedade, colaboração, valorização da ciência, uso de evidências na formulação de políticas públicas, gestão pública voltada para resultados, com foco nos mais vulneráveis.
Não podemos esquecer de que a “semente do mal”, que produz e reproduz a desigualdade, é uma visão de mundo que considera aquele que é diferente do padrão socialmente valorizado – homem, branco, jovem, saudável, cristão, rico, heterossexual – como inferior, merecendo por isto ser discriminado, excluído e, no limite, exterminado.
Por DanielaEngel Aduan -
A atual conjuntura descortina, novamente, os problemas urbanos das nossas favelas, aos olhos da sociedade carioca. Esta cortina geralmente se abre em momentos pontuais e marcantes, como quando a nossa cidade se torna anfitriã de grandes eventos ou quanto as chuvas torrenciais desencadeiam a descida, pelas ladeiras, da lama, esgoto, lixo, casas e vidas, “atrapalhando o tráfego”.
Apesar dos limites físicos e subjetivos entre a cidade formal e informal, a pandemia mostra que o vírus não respeita estas barreiras. Para o vírus, a cidade é única. Mas é na favela, onde vivem 22% da população, que o peso das mazelas, geradas por este vírus, se torna mais grave. São famílias hoje expostas a todos os tipos de riscos: financeiros, de saúde, educacionais e ambientais, que contribuem para a disseminação e para o aumento do número de mortos.
A sociedade carioca enxerga este cenário, se mobiliza através das redes sociais, e inicia rapidamente um conjunto de ações de auxílio. Mas esta ajuda, apesar de extremamente necessária, tem fôlego curto. São ações paliativas.
Cientistas preveem que estas pandemias poderão ficar mais frequentes. Por isso, se fazem necessárias ações urgentes para mitigar estes problemas. A questão é: Quais ações e instrumentos podemos lançar mão para preparar estes territórios para enfrentarem os novos riscos do nosso planeta, de uma maneira digna e eficiente?
Olhando o passado, vemos que, na década de 90, houve uma curva ascendente de ações para a melhoria da qualidade de vida dos moradores das favelas. Com base nos princípios e demandas dos movimentos que lutavam pelo direito à cidade, foi criado em 1994 o Programa Favela Bairro. Foi o primeiro programa de urbanização de favelas de grande impacto na cidade do Rio de Janeiro. Hoje, contamos com 147 favelas atendidas por este Programa, em um universo de 1018 favelas.
O Programa Favela Bairro, coordenado pela Secretaria Municipal de Habitação (SMH) e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), objetivava a integração das favelas à cidade, através da implantação da infraestrutura urbana e de equipamentos para serviços públicos.
As obras do Favela Bairro modificaram, sem dúvida, qualitativamente a paisagem urbana das favelas contempladas. Incluíram conexões viárias, construção de praças e áreas de permanência arborizadas, e principalmente, obras de saneamento.
Serviu de modelo para outras cidades e é considerado, pelo BID, um exemplo de política pública de combate à pobreza e à miséria. Mas foi um programa que atuou somente nas áreas públicas. As moradias não foram contempladas no escopo dos serviços. Acreditava-se que as ações nos espaços públicos iriam motivar a melhorias das áreas privadas. Alguns moradores até melhoraram suas fachadas, mas os problemas das construções são muito mais complexos, incluindo super adensamento construtivo, umidade, falta de iluminação e de ventilação, infiltrações, etc.
Institucionalmente, o Programa Favela Bairro foi muito importante para a consolidação e instrumentalização da Secretaria de Habitação, criada no governo do prefeito Cesar Maia. Na época, por conta do grande investimento financeiro, a Secretaria consolidou um ótimo quadro técnico, que coordenava grupos de trabalho com representantes de vários outros órgãos, para as ações no âmbito das favelas.
A Prefeitura do Rio, entretanto, pecou no processo de manutenção das intervenções. As favelas, que antes do Favela Bairro não faziam parte sequer dos mapas da cidade, depois das obras, continuaram fora da rotina institucional de manutenção dos espaços públicos. Hoje, muitas favelas, contempladas nos “tempos áureos” do Favela Bairro, estão com o ambiente urbano bastante degradado e com equipamentos públicos fechados.
O sucesso do Programa Favela Bairro motivou investimentos federais de grande vulto para urbanização de favelas. No Rio, este financiamento chegou através dos governos municipal e estadual, pelo PAC Favelas (Programa de Aceleração do Crescimento com foco nas favelas).
Junto com os volumosos investimentos, entretanto, vieram os interesses das grandes empreiteiras. Sem os parâmetros do BID e com o aumento dos interesses econômicos, os grandes complexos de favelas tornaram-se a “bola da vez”, com intervenções megalômanas que incluíam teleféricos, elevação de linha férrea etc.
A partir de 2010, a curva ascendente das ações voltadas para o processo de urbanização de favelas, que já estava bem mais branda do que na década de 90, sofreu uma queda brusca nas ações da Prefeitura, especialmente por ocasião do início dos investimentos de preparação dos megaeventos (Copa e Olimpíadas).
Por outro lado, as ações do Governo do Estado, nesta área, foram paralisadas quando o governador foi preso por corrupção, possivelmente motivada, em parte, pelos grandes contratos referentes às intervenções megalômanas.
O governo federal, numa visão dicotômica, também diminuiu muito os investimentos em urbanização de favelas, quando resolveu focar somente em ações de provisão de moradias, como no Programa Minha Casa Minha Vida.
Ainda em um período pré pandemia, o Governo do Estado retomou o tema da intervenção pública em favelas, com o lançamento da Programa Comunidade Cidade, na Rocinha, contando com um investimento de 2 bilhões de reais.
Pandemias descortinam problemas, mas a crise produz a oportunidade de repensarmos o contexto habitacional, urbanístico, social e econômico de nossas favelas.
O Rio já possui uma grande bagagem de experiências e um grupo capacitado de projetistas, servidores públicos, pesquisadores, agentes sociais e lideranças locais, com vivência no processo de transformação urbana das suas favelas.
Aprendemos, também, que somente com esforços conjuntos entre diferentes setores, e entre Prefeitura (responsável pela manutenção), Governo do Estado e Governo Federal, conseguiremos enfrentar a escala e a complexidade dos problemas escancarados pela pandemia.
Neste momento, se faz urgente o planejamento das políticas públicas para o período pós pandemia, mas olhar para o passado e ajustar conceitos pode ser um bom começo.
Daniela Engel Aduan Javoski é mestra em urbanismo, fundadora da Arquitraço, com vasta experiência em urbanização de favelas.
Por WandaEngel -
Uma das grandes vantagens da parada forçada, em função do isolamento social, é a possibilidade de aumentarmos o tempo destinado à reflexão. Refletir sobre o próprio fenômeno da pandemia me parece um exercício interessante.
Olhando para trás, me dou conta de que o contexto anterior à chegada do vírus em nosso cotidiano, já era bastante preocupante.
No Brasil e no mundo, o crescimento da extrema direita, vinha insuflando um nacionalismo míope, com uma aversão à globalização, que incluía a deslegitimação de organismos multilaterais, como a União Europeia, ou internacionais, como a ONU.
Este nacionalismo exacerbado fazia crescer a xenofobia e o isolacionismo, refletido em slogans como “América para americanos” ou “Brasil para brasileiros”, ou mesmo nas estratégias adotadas, por muitos países, para lidar com a questão dos refugiados.
Um grande retrocesso se dava também no campo da política pública, com governos privilegiando o viés religioso, mesmo em estados oficialmente laicos.
O mais impressionante, entretanto, ocorria no campo da ciência e da tecnologia, onde a desqualificação do saber científico, chegava à risível defesa da ideia de terraplanismo.
Neste contexto, quando o novo corona chegou ao mundo, através da China, acabou sendo considerado um “vírus estrangeiro”. Aventava-se, inclusive, a possibilidade de ter sido produzido em laboratório, para facilitar o domínio chinês sobre a economia global. Para se livrar desta armadilha, a proposta era a de não se parar a economia nacional, mesmo que isto representasse o sacrifício de vidas. Vida normal no meio de uma pandemia! Felizmente, na maioria dos países, não durou muito esta opinião estapafúrdia, carente de base científica e de sentimento humanitário.
No Brasil, como a introdução “oficial” do novo corona se deu através dos cidadãos globais, infectados em viagens ao exterior, reforçou-se uma tese de que a culpa era da globalização e dos mais ricos.
O primeiro aprendizado foi sobre o incrível poder disseminador deste vírus, que não respeitava nação, classe social, raça, religião, partido político ou ideologia. Apesar disto, como acontece com todos os males sociais, ele afetava mais fortemente os grupos vulneráveis,
No Brasil, os mais vulneráveis incluem pobres (54 Milhões), especialmente os miseráveis (13,2 Milhões), os desempregados (12 Milhões), os empregados informais (40 Milhões), os moradores de favelas (12 Milhões), os presidiários (820 mil) e a população de rua, cujo números oficiais certamente estão mais que defasados.
Seus efeitos mais devastadores, nesta população, são tanto de ordem sanitária, quanto econômica. Se a economia em geral se “dissolve no ar”, como consequência do isolamento social, nestes grupos se perde a fonte de renda que lhes garante (será?) a sobrevivência diária.
O segundo aprendizado foi que a ciência e a globalização não constituem o problema, mas são partes essenciais da solução. Somente uma ciência globalizada, trabalhando de forma colaborativa, pode gerar tanto as evidências necessárias às tomadas de decisão, quanto a vacina e os antivirais que nos forneçam a esperança de cura.
Finalmente, o terceiro aprendizado foi sobre a importância de contarmos com uma Rede de Proteção Social, especialmente voltada para os grupos mais vulneráveis, cuja principal estratégia são os programas de transferência de renda. Estes programas, surgidos na década de 90, somente ganharam consistência a partir do Cadastro Único das Famílias Pobres (CadÚnico), iniciado em 2000, no bojo do Projeto Alvorada.
Em novembro de 2002, um ano e 4 meses após sua criação, o CadÚnico já havia alcançado um total de 9.3 milhões de famílias pobres (57% do total); 92% dos municípios haviam iniciado ou terminado seu processo de cadastramento; 3.7 milhões de famílias possuíam seus Cartões Cidadãos (cartões bancários) e 100% dos municípios dispunham de agência ou agente bancário.
Seu rápido processo de implantação, mesmo sem contarmos com a atual tecnologia digital, resultou de uma verdadeira parceria intersetorial e multissetorial que, através de um trabalho colaborativo, produziu o mais importante instrumento para a gestão e avaliação de uma Rede de Proteção Social. Foi ele, inclusive, que possibilitou a integração dos programas de transferência já existentes, gerando, em 2003, o Bolsa Família.
Fico imaginando como enfrentaríamos, neste momento de coronavírus, o desafio de fazer chegar, com a urgência necessária, as propostas de transferência de renda, voltadas para a população mais vulnerável deste país, se não dispuséssemos de um CadÚnico, tão abrangente como ele é hoje. Assim, se partirmos deste importante instrumento, restará a inclusão imediata de empregados informais e temporários que ainda não façam parte do cadastro.
Oxalá o isolamento, ao qual deveríamos estar todos submetidos, nos possibilite uma reflexão sobre nossa realidade e suas tendências, bem como sobre a necessidade urgente de se ampliar e consolidar uma Rede de Proteção Social capaz, não somente de garantir que os atuais pobres possam superar esta condição, como de evitar que mais famílias resvalem para a situação de pobreza.
Por WandaEngel -
Publicado no Correio Braziliense em 13/02/2020 04:06
Parece que a pobreza e a desigualdade estão deixando de ser vistos como fenômenos naturais. A necessidade urgente de enfrentá-los vem ganhando espaço na agenda global. Primeiro foi Davos, que nos últimos eventos tem dado destaque especial ao tem postado em 13/02/2020 04:06 a. Junto com as questões ambientais, tornou-se alvo de acirradas discussões, envolvendo a cúpula política e econômica mundial. Agora, foi a vez do Oscar que, além de dedicar o prêmio de melhor filme a Parasita, incluiu, entre os nominados nesta categoria, o Coringa e, na de melhor filme internacional, Os Miseráveis.
Esse trio de incríveis produções aborda o tema das relações entre pobreza, desigualdade, exclusão e violência. O interessante é que as histórias não acontecem em países pobres da África Subsaariana ou da América Central, nem mesmo no Brasil. Elas acontecem em Seul, numa Gothan City, que simboliza Nova York, e em Paris. Os pobres, nesses filmes, passam longe de nossa situação de extrema pobreza, o que nos leva a refletir sobre os conceitos de pobreza absoluta e pobreza relativa.
Os exemplos típicos da pobreza absoluta são nossos indigentes, que vivem com menos de R$ 145 por mês, sem acesso à água tratada, a saneamento básico, à habitação, a trabalho, à justiça, a transporte, à educação de qualidade ou ao atendimento de saúde, em condições mínimas de eficiência.
A pobreza relativa, que é o caso dos personagens dos filmes, ocorre quando uma família, apesar de ter o mínimo necessário para sobreviver, não dispõe dos meios necessários para viver de acordo com a sociedade em que está inserida. Assim, em países com alta renda per capta, existem famílias que se consideram, e são consideradas pobres, apesar de terem uma situação socioeconômica muito acima da pobreza absoluta.
Em Parasita, os pobres de Seul viviam em subterrâneos, mas em condições muito melhores que os moradores de nossas favelas. Seus filhos pareciam ter tido acesso a uma boa educação, o que lhes dava condições para se fazerem passar por universitários ou por profundos conhecedores de artes. Os pais conseguiam se mimetizar em motorista ou governanta para servir a uma família rica. Não fosse pelo “cheiro de pobre”, poderiam eternizar a farsa. Enfim, a família era considerada pobre, em termos relativos.
O Coringa também não se enquadrava na categoria de pobreza absoluta. Vivia em um apartamento precário, mas em nada parecido com as habitações dos nossos “bairros populares”. Tinha acesso a algum tipo de trabalho e contava com uma rede de proteção social, que lhe garantia medicação e atendimento psicológico (de qualidade duvidosa).
Os personagens de Os Miseráveis viviam em um bairro de Paris, habitado por todo o tipo de grupos excluídos, onde predominavam conjuntos habitacionais, bem servidos de transportes públicos e de serviços sociais, incluindo o de segurança.
A exemplo da pobreza, a desigualdade também poderia ser caracterizada como absoluta e relativa. A absoluta, medida por meio do Índice de Gini, representaria a diferença de renda entre ricos e pobres. A desigualdade relativa seria a diferença entre as oportunidades a que têm acesso ricos e pobres. Quando esse diferencial ocorre em sociedades que se acreditam igualitárias, potencializa-se a percepção de desigualdade. São sociedades em que igualdade e a Justiça parecem ser considerados “valores inquestionáveis”. Crê-se que idênticas oportunidades são oferecidas a todos, e que vencer na vida depende do mérito e do esforço de cada um. Nelas, a profunda incongruência entre o ideal e o real gera dois fenômenos distintos.
Por um lado, justificam-se a discriminação, a exclusão e até o extermínio dos considerados menos capazes, preguiçosos ou inferiores. Por outro lado, potencializa-se a frustação, a falta de perspectiva e o sentimento de injustiça. Enfim, nos três filmes, esse sentimento de injustiça desembocava em brutal e incontida violência. Mas será que a associação entre pobreza, desigualdade, sentimento de injustiça e violência seria sempre inevitável?
A Índia, por exemplo, com altos índices de desigualdade, tem na religião a justificativa para uma estrutura de castas, baseada na ideia de que os seres humanos são naturalmente desiguais. A partir daí, a desigualdade não parece gerar violência. Por outro lado, os dados demonstram que altos níveis de desigualdade (absoluta ou relativa), em uma sociedade que se considera igualitária tendem a transformar-se em verdadeira “bomba-relógio”.
Penso que os três filmes retratam bem essa realidade, mas confesso que Os Miseráveis foi o que mais me tocou. Ele focaliza as consequências desse processo na juventude. As novas gerações de imigrantes, oriundos de todos os cantos mundo, e vivendo no país da “igualdade, fraternidade e liberdade”, no momento em que perdem as perspectivas e a esperança, voltam-se cruelmente contra toda a ordem estabelecida, inclusive contra suas próprias lideranças. Na verdade, “já vi esses filmes” em minha experiência como educadora nas favelas do Rio de Janeiro e… O final não era nada feliz.
Por WandaEngel -
*Artigo publicado em O GLOBO no dia 27/11/2019.
As notícias são bem desanimadoras. Entre 2015 e 2018, com a crise financeira, houve um retorno de 7,4 milhões à situação de pobreza, sendo 4,5 milhões à indigência (renda mensal de R$ 145). Escancara-se também a desigualdade com a renda do 1% mais rico crescendo 9,4% e dos 5% mais pobres diminuindo 40%.
Assim, num contexto de pobreza, a carência da renda soma-se à falta de acesso a uma educação de qualidade, a serviços de saúde, à Justiça, à cultura, a condições habitacionais mínimas, incluindo água e esgoto. Tudo isto gerando, no campo subjetivo, uma tendência ao fatalismo e ao imediatismo, caracterizado pela “vida severina”, sem futuro e sem projeto.
Quanto à desigualdade, vivemos uma enorme dissonância entre a ideia de uma sociedade igualitária, na qual todos podem ascender, dependendo unicamente de seus méritos e esforços, e a abissal desigualdade do mundo real. Também aí aparecem consequências subjetivas, como a baixa estima ou o sentimento de injustiça, o que pode gerar a quebra do contrato social e a violência.
O caldeirão parece estar prestes a explodir! Mas, fazer o quê?
Em primeiro lugar, é preciso ter consciência da gravidade, da complexidade e da urgência de se enfrentar este problema, que, por sinal, afeta todos, e não somente os pobres. Neste caso, não cabem soluções setoriais e reducionistas, sendo necessário desenvolver uma visão sistêmica da dinâmica de produção e reprodução da pobreza e da desigualdade. Mas, para que nossa energia não se perca no intrincado mapa das relações causais, é importante identificar os chamados “pontos de alavancagem”.
As políticas sociais brasileiras vêm buscando atuar nestes pontos: transferências condicionadas, associadas ao desenvolvimento familiar, à inclusão produtiva e ao desenvolvimento local, como ocorreu no Projeto Alvorada. Estas medidas foram responsáveis pela saída de milhões de pessoas da situação de pobreza e pela diminuição da desigualdade, tendências que, infelizmente, não se mostraram sustentáveis numa situação de crise. A pergunta de um milhão de dólares é: qual seria o “ponto de alavancagem” capaz de dar maior sustentabilidade à superação da pobreza e à diminuição da desigualdade?
Primeira dica: estudos mostram que o principal fator responsável pela produção e reprodução da pobreza, em uma sociedade do conhecimento, é a educação. Não apenas o nível da escolaridade, mas a qualidade da aprendizagem. Neste sentido, em encontro promovido pelo Todos pela Educação, Jaime Saavedra, responsável global pela área de educação do Banco Mundial, defendeu a importância da alfabetização plena (capacidade de ler e interpretar um texto simples) até os 10 anos. As crianças deveriam ser alfabetizadas até os 8 anos e ter esta habilidade consolidada aos 10. Segundo ele, após essa idade, torna-se cada vez mais difícil desenvolver tal competência, que está na base do processo de aprendizagem de todas as outras áreas. A percentagem de crianças com 10 anos que não desenvolveram esta habilidade definiria a chamada “taxa de pobreza de aprendizagem”.
O Brasil, como um todo, aparece com uma taxa de 48%, enquanto a média dos países pobres e médios chega a 53%. Entretanto, mais uma vez as médias escondem a desigualdade. Enquanto em São Paulo a pobreza de aprendizagem atinge a taxa de 27%, no Maranhão é de 70%.
Como a pobreza de aprendizagem é um preditor, não apenas da reprodução da pobreza e da desigualdade, como do desenvolvimento econômico e social, creio firmemente que sua diminuição possa se constituir em um efetivo ponto de alavancagem.
Para tanto, é preciso que não esqueçamos que um problema complexo exige uma abordagem intersetorial e estratégias colaborativas, envolvendo governos de diferentes níveis e áreas (educação, saúde, assistência, cultura, esporte), empresariado, organizações da sociedade civil, universidades e mídia em torno de uma agenda comum.
Neste caso, nossa agenda comum poderia ser a garantia da alfabetização plena de nossas crianças até os 10 anos. Com esta agenda, todos poderiam contribuir, a despeito das posições econômicas, sociais ou ideológicas.
Será que ainda é possível sonhar com colaboração em um contexto tão polarizado? A educação poderia realizar este milagre? Eu acredito!
Wanda Engel é consultora internacional do Synergos Institute e foi ministra da Assistência Social
Por WandaEngel -
*Artigo publicado originalmente no meu Linkedin
A situação que vivemos hoje no Brasil me lembra a metáfora do sapo. Dizem que se colocarmos um sapo dentro de uma panela com água fervendo, ele pula imediatamente para fora. Caso o coloquemos em água morna, ele vai se acostumando, se distraindo, a água ferve e ele acaba morrendo cozido. O pobre sapo não percebe as mudanças graduais de temperatura e se ferra.
Nosso contexto é tão conturbado por uma miríade de acontecimentos graves ou bizarros que acabamos não percebendo e nos acostumando às pequenas transformações e nos ferramos.
Na área social, por exemplo, as mudanças ocorrem e as pessoas, distraídas, não percebem a gravidade da situação.
Vocês notaram, por exemplo, que acabaram com o ministério responsável por enfrentar nosso principal problema, o da pobreza e da desigualdade? O Ministério do Desenvolvimento Social foi transformado em Cidadania, onde se agregou, sem maiores explicações, a área de cultura.
Parece que esta área é tão mais charmosa, que não se fala mais sobre a pobreza.
Quando até o Fórum Econômico Mundial de Davos dá destaque especial à discussão sobre pobreza e desigualdade, porque seus membros, atentos que são, já perceberam as consequências econômicas deste fenômeno, no Brasil vivemos a fase da “proposta zero” para estas questões.
No decorrer das últimas décadas, governos de diferentes matizes tiveram o mérito de possibilitar a saída de milhões de brasileiros da situação de pobreza. Foram programas de transferência de renda (Rede de Proteção Social) que, por meio do Cadastro Único, possibilitaram a sua integração sob o guarda-chuva do Bolsa Família. Também tiveram importante papel, neste processo de promoção, as ações integradas de desenvolvimento humano local (Projeto Alvorada), as proposta de construção de “portas de saída” (Brasil sem Miséria) ou mesmo um trabalho intersetorial voltado para a primeira infância (Criança Feliz).
Hoje a temperatura social aumenta. Grande contingente de pobres retorna à sua condição original, em função da crise econômica e do desemprego. Retornam desiludidos e sem esperanças. E nada se faz. Vivemos um total vazio de propostas.
O jeito é pular desta panela e buscar outras alternativas. Se o governo federal e os estaduais parecem paralisados, resta-nos investir no poder local. Na verdade, federação e estados são meras abstrações que, tirando a função de cofinanciamento das ações municipais, têm um papel absolutamente secundário.
É no território concreto do município que as pessoas nascem, crescem, amam e fazem amor, constituem suas famílias, moram, trabalham, se deslocam, necessitam dos serviços públicos, matam e morrem.
As próximas eleições são a grande oportunidade para virar este jogo.
As perguntas básicas para os candidatos deveriam ser: Qual sua proposta para oferecer condições para que as famílias superem sua situação de pobreza? Como você pretende priorizar os mais pobres, nas políticas sociais (educação, saúde, assistência, cultura e esporte), econômicas e urbanas, diminuindo, assim a desigualdade? Como você propõe integrar as diferentes áreas de sua administração na busca do aumento de impacto das políticas de diminuição da pobreza? Enfim, como você pretende colocar as políticas voltadas para os mais pobres no centro de sua administração?
Respondeu? Eu voto