Wanda Engel
Por WandaEngel -
De posse da “caneta” (não era uma BIC), meu primeiro desafio era o de ter clareza sobre o papel constitucional da Secretaria de Estado de Assistência Social. Alguma coisa do tipo “existirmos, a que será que se destina”.
De acordo com a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), cabe à SEAS cofinanciar, por meio de transferência automática, a gestão e a oferta de serviços; definir normas e princípios gerais para a política de assistência de estados e municípios e assessorá-los na sua implantação, além de monitorar e avaliar este processo.
Em regime de colaboração, é papel dos governos estaduais apoiar técnica e financeiramente a ação dos municípios, sendo estes os principais responsáveis pela execução dos atendimentos. A lei abre também, aos estados, a possibilidade da oferta direta de serviços, especialmente na área da proteção especial ou em situações emergenciais.
Entretanto, como executar os programas é muito mais atraente, do ponto de vista político, cria-se uma certa competição entre os entes federativos, com o Governo Federal e os estados desenvolvendo ações diretas e, muitas vezes, abdicando de seus papéis de coordenar e apoiar a ação municipal.
A partir desta definição e buscando cumprir o papel definido pela LOAS, iniciamos a formulação de um marco para a política de combate à pobreza, que servisse de diretriz, tanto para a formulação das políticas estaduais e municipais, quanto para a definição da estrutura de gestão e de governança da própria SEAS.
Uma das principais causas do fracasso das políticas públicas no Brasil parece ser a ausência de um marco conceitual, o que acaba gerando ações erráticas, através de uma miríade de programas, com nomes bonitinhos, mas pulverizados e sem efetividade.
Aliás, é notória a falta de preocupação com a concepção orgânica de uma Política de Assistência no país. Além disto, penso que o próprio fato de ser denominada “de assistência” reforça a percepção de que seu único foco é a proteção social.
Como veremos mais adiante, a própria constituição ressalta sua função de proteção/promoção/ autonomia, com vistas à superação da pobreza. Esta política é a principal responsável pelo enfrentamento do inaceitável nível de desigualdade do país. Denominá-la “política de desenvolvimento social” poderia ser um passo importante no reconhecimento da amplitude e da centralidade de sua função.
A partir da compreensão desta importância, espera-se que os gestores responsáveis por sua concepção e implantação não continuem sendo escolhidos entre os “de bom coração”, os “políticos a procura do voto dos pobres” ou “primeiras damas, do lar”.
O momento atual, em que a pobreza e a desigualdade se aprofundam, está a exigir seriedade e competência na gestão desta política.
A preocupação era a de conceber um marco que incorporasse o que vinha sendo feito e avançasse na busca por maior organicidade e efetividade.
A exemplo de minha experiência na SMDS, que por sinal era uma Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, a proposta reforçava a centralidade da família e da mulher; introduzia a ideia da intersetorialidade e da organização de programas, utilizando a metodologia dos ciclos de vida; definia a necessidade de programas para grupos mais vulneráveis e a garantia de condições financeiras mínimas para estes grupos. Propunha, também, a implantação/fortalecimento do Sistema Descentralizado e Participativo da Assistência, estrutura básica de governança da política
O infográfico abaixo, muito utilizado no processo de disseminação do novo marco, é uma representação visual da proposta.
Este marco inspirou, não somente mudanças na concepção programática, como também na estrutura e nas diretrizes de funcionamento da SEAS.
Não se faz mudança sem partir de uma visão sistêmica da realidade que se quer transformar. Uma importante contribuição do Pensamento Sistêmico para o processo de transformação é a Teoria do Iceberg. Segundo ela, a realidade é como um iceberg, no qual o contexto e as tendências constituem a parte visível. Já a parte submersa (90%) seria constituída pela estrutura (incluindo cultura institucional e gestão), e pelos modelos mentais subjacentes.
Ou seja, não promovemos transformação efetiva se não atuarmos também nos fatores subjacentes, especialmente nos modelos mentais, que definem as estruturas, as culturas institucionais e as formas de gestão e governança.
Ora, como a SEAS tinha status de ministério, era possível criar Secretarias Nacionais. Foram, então, implantadas a Secretaria Nacional de Assistência e a Secretaria Nacional de Planejamento, Monitoramento e Avaliação (SNPA).
A primeira, já tradicional na área de assistência, era destinada a atuar na parte visível (contexto e tendências), através de programas e projetos. A segunda encarregava-se da parte submersa (estrutura/gestão, cultura institucional e modelos mentais)
Assim, a SNPA, sob a direção de Sonia Silva, introduziu a lógica da Gestão para Resultados, e promoveu mudanças na cultura institucional e no “modelo mental” hegemônico, através de um processo de capacitação continuada de todos os envolvidos.
A SNPA exerceu um papel fundamental no Projeto Alvorada (Episódio 6), na implantação do Cadastro Único (Episódio 7) e na criação e funcionamento do Centro Nacional de Formação Comunitária (CENAFOCO) (Episódio 8).
Inclui-se na cultura institucional a lógica da repartição do dinheiro. O critério de distribuição dos recursos financeiros do FNAS para estados e municípios, herdada da antiga Legião Brasileira de Assistência (LBA), seguia a lógica da “existência do serviço”. Assim, estados e municípios que tinham atendimento à primeira infância, a portadores de deficiência ou a idosos, recebiam recursos do fundo. Quem não tinha, não recebia.
Esta era uma estratégia que aprofundava as desigualdades, uma vez que tais serviços existiam prioritariamente nos estados mais ricos. Assim, os do Sul e Sudeste recebiam muito mais recursos que os do Nordeste, Norte e Centro Oeste.
Evidências desta situação foram detectadas no estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a nosso pedido, coordenado por Ricardo Paes de Barros (PB), que se tornou, a partir daí, o mais importante apoiador técnico da SEAS.
Vale ressaltar que durante toda a administração, o conjunto de dados sobre pobreza e desigualdade, produzidos pelo IPEA e outros órgãos de pesquisa, serviram de insumos para as principais decisões estratégicas da SEAS. Aliás, políticas baseadas em evidências parecem ser fundamentais para o aumento do impacto dos resultados desejados.
Assim, com base naquele estudo, foi feita uma proposta de alteração dos critérios de distribuição, pautada no índice de cobertura dos programas, no nível de incidência da problemática e nos índices de desenvolvimento da região.
A proposta consistia em alocar os recursos adicionais do Fundo Nacional de Assistência Social nos estados, cuja Média Estadual de Atendimento estivesse abaixo da Média Nacional, de forma a aproximá-los, ao máximo possível, da Média Nacional.
Para não causar a desarticulação dos serviços já existentes, previu-se um período de transição (soft landing) em que o aumento da cota dos mais pobres se faria apenas em função dos incrementos dos recursos do fundo.
A reação dos estados mais ricos não se fez esperar. Inconformados, chegaram a arguir a provável falta de capacidade gerencial dos mais pobres para fazer uso dos novos recursos. Enfim, gestores de uma política de redução da pobreza pareciam não acreditar na competência gerencial dos mais pobres! Olha o modelo mental!!!
Mais detalhes sobre os critérios de partilha podem ser encontrados nesta apresentação sobre o tema.
A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), de 1993, previa um processo de descentralização, estruturado em função de um Sistema Descentralizado e Participativo. Este sistema, inspirado na área da saúde, incluía Conselhos de Assistência Social nos níveis nacional, estaduais e municipais, além de comissões intergestoras: tripartite, em nível nacional, e bipartites em cada estado.
Era hora de “arregaçar as mangas” e implantar efetivamente este conjunto de conselhos, fundos e comissões. As prioritárias eram as comissões intergestoras e rapidamente foi criada a Comissão Intergestora Tripartite e incentivada a implantação de 27 Comissões Intergestoras Bipartites. Até o final do governo, haviam sido implantados, além do Conselho Nacional de Assistência Social, todos os Conselhos e Fundos Estaduais. Funcionavam também Conselhos e Fundos Municipais em 82,4% dos municípios brasileiros. O SUAS estava de pé!
De grande importância para o processo de descentralização foram os colegiados de gestores: em nível estadual, o Fórum Nacional de Secretários de Estado de Assistência Social (FONSEAS), e em nível municipal, o Colegiado Nacional de Gestores de Assistência Social (CONGEMAS).
Reunião do FONSEAS na Paraíba
Lembro-me bem de minha primeira reunião do CONGEMAS, em Teixeira de Freitas (BA). Era janeiro de 1999 e o país estava passando por uma séria crise financeira. Havia um severo contingenciamento das verbas de todos os ministérios, incluindo a SEAS. Eu deveria encarar uma plateia de milhares de gestores para justificar cortes em programas da primeira infância, idosos, pessoas com deficiência e PETI. Havia conversado com o presidente sobre as consequências deste corte, mas ainda não havia obtido respostas. Quando estava me dirigindo para o encontro, recebi um telefonema da Casa Civil, dizendo que o orçamento da SEAS havia sido recomposto. Só eu fiquei sabendo disto naquele momento. Quando cheguei no encontro, a comissão de frente era de pessoas com deficiência, justamente revoltados com a situação. Quando entrei no recinto, o olhar dos participantes era gélido. Parecia que queriam “comer meu fígado”. Meu primeiro grande prazer no cargo foi dizer àquela plateia que seus programas estavam preservados. Apesar de ser apenas a mensageira da boa nova, me aplaudiram de pé durante muito tempo. Ufa!!!
Participação no 26º Fórum Nacional de Secretários Municipais de Assistência Social
Tive também a experiência de apoiar o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) na promoção da III Conferência Nacional de Assistência Social, sobre o tema “Política de Assistência Social: Uma trajetória de avanços e desafios”, realizada no período de 4 a 7 de dezembro de 2001.
A Conferência Nacional é a culminância de um processo que se inicia no município, onde é feita a mobilização e a capacitação para a participação. São também escolhidos os delegados que participarão da Conferência Estadual, em caráter paritário (governo e sociedade civil) e participativo (devem ser incluídos usuários, universidades e interessados).
Já no nível nacional, devem ser definidas prioridades e feitas sugestões para o funcionamento do SUAS.
O produto final, apesar de ser fruto de um consistente processo democrático, nem sempre é objetivo, baseado em evidências ou na existência de recursos orçamentários, acabando por se tornar um conjunto de boas intenções, com pouca possibilidade de se tornar efetivo.
Quando analisei as propostas oriundas desta III CNAS, tive a certeza de que, nem multiplicando por cem os recursos orçamentários destinados ao órgão, daria conta de garantir plenamente sua implantação. Enfim, planejamento participativo ou sonho compartilhado?