Wanda Engel
Por WandaEngel -
[Temporada Governo Federal]
Como sabemos, a pobreza, longe de ser um fenômeno natural, é fruto de um processo de produção e reprodução. Ela começa a ser produzida na própria concepção dos indivíduos gerados em famílias pobres. Eu costumo dizer que a diferença entre nascer rico ou pobre depende de um “acidente geográfico”. Tem a ver com a barriga em que se é gerado. Coisa que, vamos combinar, ninguém escolhe.
A condição inicial de pobreza se consolida, através de fatores desfavoráveis ao próprio processo de desenvolvimento do indivíduo, tais como, a falta de acesso a uma educação de qualidade, a serviços de saúde eficientes ou a condições adequadas de moradia.
Somam-se a estas condições objetivas, uma vivência marcada pelo preconceito, pela discriminação e pela exclusão, com profundas consequências subjetivas, especialmente no campo da autoestima. A tendência acaba sendo a de abandonar a escola antes de completar sua educação básica, inserir-se num subemprego ou em atividades marginais ou ilegais e formar uma nova família, tão ou mais pobre do que a sua própria.
Completa-se, então, o chamado ciclo intergeracional de reprodução da pobreza. Isto ocorre justamente na transição criança/adulto, ou seja, na adolescência ou na juventude.
Apesar da importância dos jovens no processo de reprodução, ou de quebra deste ciclo, a Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS) – órgão responsável pela redução da pobreza e da desigualdade – não tinha, até aquele momento, políticas ou programas voltados para esta importante etapa. Era, portanto, urgente estabelecer diretrizes para esta fase.
Os princípios definidos para a política de juventude foram: a inserção, manutenção e conclusão da educação básica, o protagonismo juvenil e a introdução ao mundo do trabalho acompanhada de uma renda mínima. O lócus de atuação era o “grupo de jovens”.
Baseada nestes princípios, surge a proposta do Programa Brasil Jovem.
Assim como “todos os caminhos levam a Roma”, todos os componentes do Brasil Jovem deveriam focalizar o primeiro princípio: a permanência/retorno à escola, visando à conclusão do Ensino Médio.
Isto porque havia a certeza de que, em uma sociedade do conhecimento, como a nossa, o diploma da educação básica era o passaporte mínimo para a entrada, “com o pé direito”, na idade adulta, por meio do acesso a um trabalho digno ou à entrada em uma universidade.
Dentre os mais preocupantes indicadores, referentes especialmente à nossa juventude pobre, destaca-se o crescente contingente de jovens que não estudam nem trabalham: os chamados nem-nem. Em 2018 estavam nesta condição 23% de jovens entre 15 e 29 anos, perfazendo um total de quase 11 milhões, o maior índice da série histórica. Destes, quase a metade não havia concluído o Ensino Fundamental e aproximadamente 30% havia apenas terminado esta etapa. Jovens que não tiveram a oportunidade de desenvolver habilidades necessárias à inclusão no mundo da inteligência artificial, da biotecnologia e da robótica. Segundo Yuval Harari, não lhes estaria reservada sequer a condição de “exército de reserva” de mão de obra barata. Formariam uma parte “dispensável” da população, sem futuro e sem função.
Por outro lado, acreditávamos que a saída de uma família, da situação de pobreza, só seria sustentável se todos os membros das novas gerações completassem sua educação básica.
A questão do protagonismo, aliado à introdução ao mundo do trabalho e à garantia de uma renda mínima, também eram pilares de todos os componentes do Brasil Jovem, especialmente do Agente Jovem de Desenvolvimento Social.
Uma proposta, com algumas destas características, foi a iniciativa do Viva Rio, denominada Serviço Civil Voluntário, destinada a oferecer uma opção ao Serviço Militar. Sua citação neste relato tem a intenção de contribuir para que não caia no esquecimento uma boa sugestão para políticas de juventude. O Serviço Civil, seria exercido na rede pública de serviços sociais (escolas, creches, abrigos de idosos, centros de saúde, centros culturais e esportivos), mediante uma bolsa mensal. Tenho a certeza de que, com uma proposta como esta, a juventude brasileira teria muito a contribuir para a melhoria de nossos serviços sociais. Infelizmente não se concretizou.
A proposta da SEAS – O Brasil Jovem – incluía um conjunto de programas, que se iniciava pelo Agente Jovem, voltado para a faixa de 15 a 17 anos. A seguir, para os jovens entre 16 e 18, vinham os programas de capacitação profissional. O fluxo deveria culminar com o primeiro emprego ou a entrada na universidade. Em todo este percurso, deveria ser garantida a permanência do jovem no sistema educacional, até sua conclusão.
Para garantir esta permanência, previa-se a oferta de uma “Bolsa Jovem” que acabou sendo implantada apenas no Agente Jovem. Mais tarde, o grupo de 15 a 17 anos passou a ser beneficiário do Bolsa Família, mas os recursos eram dirigidos à mãe e não aos jovens.
A experiência vinha mostrando que o jovem necessitava que os recursos fossem direcionados diretamente a eles, a fim de suprir suas “demandas de jovem”. Mesmo que eles viessem a repassar o dinheiro para as famílias, ter o poder de decisão fazia parte do processo de construção de sua autonomia. Os absurdos índices de abandono escolar estavam muitas vezes ligados a esta demanda. Os jovens largavam a escola em busca de uma fonte de renda, em subempregos ou atividades marginais, nem sempre por conta da extrema pobreza das famílias, mas por suas próprias necessidades de consumo.
Interessante é que todo o sistema de bolsas, para as famílias ou para os jovens constituem um incentivo para que se cumpra um dever constitucional. Isto porque, uma alteração feita na LDB em 2013, oficializando uma emenda constitucional, determinou a obrigatoriedade da escolaridade desde os 4 até os 17 anos, sendo responsabilidade das famílias manterem seus filhos na escola e dos sistemas educacionais garantirem a oferta de vagas. Parece, entretanto que ainda não “caiu a ficha”, tanto do sistema educacional, quanto dos Conselhos Tutelares para fazer cumprir esta legislação. É como se a sociedade percebesse como “natural” jovens, a partir dos 15 anos, abandonarem os estudos. Isto, além de ilegal, deveria ser inaceitável!!!
O principal pressuposto do Programa Brasil Jovem, em todas as suas modalidades, era o de que, ao contrário da crença generalizada, os jovens não eram “o problema”. Na verdade, eles eram vistos como o principal instrumento de resolução dos problemas que os afetavam, ou seja, parte importante da solução.
A música tema dos programas do Brasil Jovem era a canção de Gonzaguinha – E Vamos à Luta – cuja letra dizia: “Eu acredito é na rapaziada, que vai em frente e segura o rojão. Eu boto fé é na fé da moçada, que não foge da luta e enfrenta o leão. Eu vou à luta com essa juventude, que não foge da raia a troco de nada. Eu vou no bloco desta mocidade, que não está na saudade e constrói o amanhã desejado”.
Certa vez, em um grande encontro de Agentes Jovens, em Campo Grande- MS, explicava à plateia a razão de ser da escolha. Neste momento, as centenas de jovens começaram a gritar “canta, canta”. Não me fiz de rogada. Foi minha primeira (e única) apresentação musical como ministra. Adorei!
A juventude, por suas características físicas, fisiológicas e psicológicas, tem uma grande dose de energia vital que necessita ser utilizada. Caso não sejam oferecidas oportunidades de atuação positiva, ou seja, o “bonde do bem”, eles vão embarcar no “bonde do mal”. Parados é que não conseguem ficar.
O que era o Agente Jovem
Seguindo a diretriz básica, para participar do programa, o jovem deveria estar matriculado ou retornar à escola. A partir da própria escola eram formados grupos de 15 jovens, que atuavam em suas comunidades, nas áreas de saúde, meio ambiente ou cidadania. A opção por não mobilizar os jovens a partir das comunidades era a de incentivar a manutenção ou o retorno à escola.
Os agentes jovens de saúde deveriam, em ação conjunta com os Agentes Comunitários de Saúde, identificar crianças e adolescentes em situação de risco (desnutrição, doenças respiratórias, doenças transmissíveis) e encaminhá-las para atendimento em postos de saúde.
Os agentes jovens de meio ambiente atuavam nas questões de lixo sólido, plantio de árvores ou despoluição de rios e nascentes.
Já os de cidadania ou de direitos humanos identificavam casos de violação de direitos, crianças fora da escola ou falta de acesso a benefícios como o BPC e encaminhavam para o atendimento.
A modalidade que não chegamos a implantar seria a de Agente Jovem de Desenvolvimento Infantil, com atuação em creches, apoiando o trabalho dos educadores. Além de lidar com importantes temas ligados à maternidade e paternidade, possivelmente o “extenuante” trabalho com criancinhas poderia funcionar como um verdadeiro antídoto para a gravidez precoce.
Grande parte destes agentes jovens atuou também nos Portais do Alvorada, no Cadastro Único das Famílias Pobres e no Plano Nacional de Segurança Pública, como veremos mais tarde.
Os agentes jovens atuavam em horário complementar a suas atividades escolares, por 12 horas semanais (4 horas, 3 vezes por semana), sob a orientação e supervisão de um orientador (jovem da comunidade com ensino médio completo), recebendo uma bolsa de meio salário mínimo por mês. Já a bolsa do orientador era de ¾ do salário mínimo.
Os orientadores recebiam formação, através de organizações parceiras do Centro Nacional de Formação Comunitária (CENAFOCO), do qual falaremos mais tarde, e eram os responsáveis pela capacitação e acompanhamento dos agentes jovens.
Como este programa não constava da proposta orçamentária do ano anterior, não se dispunha de verba específica para sua implantação. Mesmo lançando mão de outras fontes, a cobertura seria mínima se não tivéssemos utilizado uma proposta de parceria com empresários locais.
Como, em valores da época, o per capta anual do programa era de R$ 1.200,00, enquanto o de um jovem infrator era quase 20 vezes maior, era fácil convencer os empresários a investirem em uma estratégia de prevenção. O lema era: A cada jovem financiado pelo empresariado, a SEAS assume o custo de um outro jovem.
Houve casos em que uma única empresa se responsabilizava por todo custo de uma cidade, como a White Martins, na cidade de São José da Tapera, em Alagoas, que apresentava o mais baixo IDH do Brasil. A cidade teve um crescimento do IDH tão substantivo que esta empresa ganhou prêmios nacionais (Eco Social) e internacionais de responsabilidade social, por sua atuação no programa.
Assim, terminamos a administração com 120 mil Agentes Jovens, tendo por base um orçamento público reduzidíssimo.
Ainda hoje o programa existe, por iniciativa de governos locais.
Mais informações sobre os Agentes Jovens de Desenvolvimento Social e Humano podem ser encontradas nesta apresentação sobre o tema.
No episódio 6, você terá a oportunidade de conhecer um Plano Nacional de Segurança Pública que enfatizava as ações sociais e a atuação dos Agentes Jovens de Desenvolvimento Social e Humano. Estou esperando você na próxima quinta!