Wanda Engel

Por MariChiba -

De volta às origens PUC Terceiro Setor UERJ

Como foi dito no episódio anterior, com o término da administração Brizolista, resolvi buscar novos caminhos de atuação, fora das políticas de governo, concorrendo à docência na UERJ, ingressando no doutorado da PUC RJ e criando uma ONG.

A docência na UERJ

Em 1987 ocorreu o primeiro concurso público para docente da Faculdade de Educação da UERJ. Havia apenas uma vaga, que consegui conquistar, e que me abriu as portas para a atuação no mundo acadêmico.

Devo confessar que nunca cheguei a me identificar plenamente com aquele universo. Minha trajetória sempre fora a de um diálogo constante entre teoria e prática, tendo a prática como ponto de partida e de chegada, e utilizando a teoria como um instrumento de aperfeiçoamento da prática. Assim, um espaço predominantemente teórico não me atraía muito.

Por outro lado, nunca me convenci totalmente da necessidade de os professores exercerem, obrigatoriamente, todas as três funções universitárias: docência, pesquisa e extensão. Concordava com a inter-relação entre estes campos de atuação, mas constatava que um excelente pesquisador não era necessariamente um bom docente ou um competente extensionista. Apesar disto, cumpria tal requisito, pois, além da docência, exercia as funções de pesquisa e extensão através da organização não governamental que estava criando naquele momento, o Roda Viva. Estas duas atividades nunca foram, entretanto, oficialmente reconhecidas, como tal, pelas sub-reitorias de pesquisa e de extensão.

Ocorre que, meses após minha admissão na UERJ, fui convidada a exercer as funções de assessora da sub-reitoria de graduação, o que me trazia de volta ao campo da gestão. Esta atividade se conjugava com a docência, no curso de pedagogia e nas licenciaturas, especialmente na de educação física, e com a direção do Roda Viva.

Eu adorava dar aulas no curso de Educação Física. Uma juventude adepta do lema “mens sana in corpore sano”, era em geral muito alegre e dotada de fino humor. Minhas primeiras turmas cumpriam um currículo diferenciado para homens e mulheres, que somente se reuniam nas chamadas disciplinas teóricas. A partir de uma nova proposta, o currículo passou a ser único, inclusive na parte prática, com meninos fazendo dança e meninas praticando boxe. O efeito foi impressionante: turmas mais unidas, discussões mais inteligentes, sínteses mais profundas. Ficava impressionada com a riqueza advinda da diversidade que surgiu, quando não mais se obrigava “as meninas a vestirem rosa e os meninos azul”!

Conjunto arquitetônico da UERJ, de autoria de Luiz Paulo Conde, composto por dois blocos, com diferença de altura de meio piso, o que permite a circulação através de rampas.

 

A iniciativa mais marcante deste período, na sub-reitoria de graduação, foi a que implantou mudanças no sistema de seleção de alunos. Um estudo havia identificado uma grande taxa de evasão, especialmente ao término do primeiro ano da graduação, e uma substantiva sobra de vagas nas carreiras menos valorizadas. Um dos principais fatores apontados era o próprio desenho do vestibular.

Naquela época, o candidato fazia uma lista de opções e, e de acordo com seu desempenho, tinha acesso a uma delas. Assim, um jovem cuja primeira opção tivesse sido medicina, e não alcançasse o desempenho mínimo exigido para este curso, poderia ter acesso a uma outra escolha, por exemplo, Fisioterapia. O aluno cursava Fisioterapia, ocupando a vaga de um outro estudante, de desempenho considerado insuficiente, mas cuja primeira opção tivesse sido justamente aquela. No ano seguinte, voltava a tentar medicina e, se obtivesse sucesso, abandonava o curso de fisioterapia. E lá se ia, pelo ralo, todo o investimento feito neste jovem, durante aquele ano.

Diante desta evidência, os novos critérios, concebidos pela sub-reitoria, privilegiavam a primeira opção do candidato, garantindo, inclusive, a entrada de jovens com resultados abaixo da linha de corte (desde que diferente de zero), de forma a preencher as vagas existentes.

Para estes alunos, com desempenho considerado insuficiente, era oferecido um “curso de nivelamento”, sob a responsabilidade da Faculdade de Educação, e ministrado por alunos dos cursos de licenciatura. O programa deste curso era focado nos conteúdos básicos do Ensino Médio, considerados como pré-requisitos para a área de conhecimento escolhida.

Se ao final do semestre, o aluno não conseguisse vencer suas deficiências, era oferecida a oportunidade de mais um semestre de nivelamento. Caso completasse este segundo semestre sem sucesso, perdia a matrícula na universidade.

Os resultados mostraram que o desempenho, na universidade, do grupo que frequentava o “curso de nivelamento” era superior ao dos demais alunos, que a taxa de abandono baixava substancialmente, e que a experiência docente dos licenciandos era muito mais consistente do que no modelo de estágio anteriormente adotado (uma aula no Colégio de Aplicação).

Esta experiência sempre me remete ao problema enfrentado pelos atuais cotistas das universidades. Os dados têm demonstrado uma substantiva taxa de evasão, entre eles. Fica assegurada a oportunidade de ingresso, através da cota, mas não ficam garantidas as condições financeiras e acadêmicas para o seu aproveitamento.

Assim como se fez necessária a implantação de  bolsa permanência para estes alunos, é fundamental que também se ofereça um “curso de nivelamento” capaz de suprir as falhas de aprendizagem, que trazem da educação básica, e que os impedem de aproveitar esta incrível oportunidade.  

Novamente o diálogo teoria-prática

A busca incessante de base teórica que informasse minha prática, levou-me ao curso de Doutorado em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Este foi um período muito difícil, pois tinha de conjugar o cuidado de uma família com três crianças, as atividades docentes e de gestão na UERJ, o curso de doutorado e a direção do Roda Viva (ufa!).

Tenho a certeza de que, se não fosse o grande apoio e paciência de minha família, especialmente de meu marido e de minha mãe, além da compreensão da equipe do programa de doutorado da PUC, eu teria desistido desta empreitada, que se mostrou fundamental para minha carreira e para minha vida.

Uma instituição não se caracteriza apenas por sua estrutura física ou por seu sistema normativo. Penso que o mais fundamental seja a cultura institucional que norteia seu funcionamento e a atitude de seus membros. Neste sentido, a PUC RJ é, para mim, um exemplo de organização orientada pelos valores da solidariedade, do acolhimento e do respeito às condições de cada um.

Tive a oportunidade de vivenciar esta atitude institucional em duas ocasiões. A primeira, quando estava prestes a desistir e perdi o prazo de trancamento de matrícula. A Faculdade de Educação incentivou-me e participar de uma nova seleção, o que me permitiu o retorno. Num segundo momento, no meio do curso, minha mãe faleceu. A PUC mandou rezar uma missa em sua homenagem, sendo eu apenas uma de suas alunas, e ainda por cima, agnóstica!

Em minha tese de doutorado – “Da Violência ao Diálogo: a socialização de crianças num contexto de pobreza urbana” – buscava compreender por que razões, crianças que cresciam em um ambiente marcado pobreza e pela violência, poderiam trilhar caminhos de vida tão diferentes. Para uns, a via da educação e do trabalho, para outros, a da marginalidade e da morte precoce.

O trabalho dedicou-se a estudar o  processo de socialização  de  crianças pobres, a partir da articulação entre três âmbitos de análise:  o macroestrutural (econômico, social, cultural, jurídico e demográfico); o das relações intersubjetivas, com foco na ação dos principais agentes de socialização (família, escola, grupos de vizinhança, rua/instituições), e o pessoal, relacionado às representações sociais que esta criança constrói sobre si própria e sobre sua realidade.

Tratava-se de uma pesquisa de caráter etnográfico, que partia de casos de adolescentes infratores, e caminhava ao reverso de seu processo de marginalização, chegando à rua, à favela, à escola e à família. Neste percurso, buscava identificar outros casos de crianças que, mesmo compartilhando um contexto semelhante, estivessem trilhando caminhos sociais diferenciados.

Finalmente, buscava compreender a representação social que todas estas crianças construíam sobre trabalho, consumo, norma, autoridade, família, raça, gênero, vida e morte, autoimagem e perspectivas futuras.

A compreensão orgânica destes três âmbitos (macro, intersubjetivo e pessoal), correlacionada com os diferentes caminhos, fornecia pistas, não somente para a identificação de fatores associados aos diversos destinos, como para a sugestão de estratégias capazes de transformar o processo de socialização destas crianças, superando a “lógica da violência”, a partir do estabelecimento de uma “lógica dialogal”.

Este trabalho acadêmico me deu a oportunidade de revisitar a realidade das favelas cariocas, bem como de descortinar as entranhas do sistema “socioeducativo” voltado para jovens infratores, tanto os masculinos quanto os femininos, com todas as suas mazelas.

Com relação às favelas, foi possível verificar o aprofundamento de características já bem conhecidas na Mangueira.

Primeiro, o aumento do poder do narcotráfico e da violência, gerada tanto pela guerra entre “comandos” – a esta altura o Comando Vermelho já tinha como concorrente o Terceiro Comando – quanto pela política de segurança, que promovia uma ação policial do tipo “prende, arrebenta e mata”. Na prática, a condenação sumária à morte (um tiro na cabecinha), não prevista no sistema penal brasileiro.

Segundo, crescera também a rede de igrejas pentecostais. Encontravam-se dezenas delas no complexo do Pavão/Pavãozinho e Cantagalo, no Vidigal e na Rocinha, comunidades onde residia a maioria dos jovens autores de atos infracionais do Rio. Uma hipótese para esta concentração geográfica na zona sul seria o forte “efeito demonstração” da desigualdade social, vivenciado nesta parte da cidade. Aí, as favelas são enclaves de pobreza, em áreas onde predomina a riqueza.

Quanto às unidades socioeducativas, posso dizer que, dentre os fenômenos que mais me chamaram a atenção, destacaria o grau de violência no atendimento, especialmente dos meninos. Todos eram chamados apenas por seu número de inscrição, nunca pelo nome; eram frequentemente colocados no pátio, seminus, deitados de bruços, com as mãos nuca, além de serem sujeitos a castigos físicos, sempre relatados, mas nunca presenciados. Parecia haver uma dinâmica intencionalmente voltada a “desidentificar” e “desumanizar” aqueles meninos. Na verdade, só quem não conhece o atendimento a que estão sujeitos os “meninos em confronto com a lei” pode acreditar na impunidade dos delitos cometidos por estes jovens. As unidades são verdadeiras prisões e o tratamento extremamente violento.

Em certa ocasião, enquanto aguardava, junto com os “internos”, uma audiência com o juiz, em uma sala onde sobressaía o retrato do então presidente Collor de Melo, pude presenciar uma conversa entre eles. Como justificativa para seu crime”, um deles dizia: Se até ele, que é rico e presidente, rouba, porque nós, que somos pobres, não podemos roubar! A força do exemplo!

Nas unidades femininas, um pouco menos violentas, era muito evidente a necessidade da criação de um “vínculo familiar” simbólico. Elas formavam grupos de “famílias” em que eram cumpridos os papeis de pai, mãe, filhos e filhas. Nestas “famílias” os membros ganhavam proteção, afeto e grupo de pertencimento, havendo disputas, entre elas, pelo domínio do poder dentro da instituição.

Entrando no mundo das ONGs

Neste momento, sentia grande necessidade de um novo campo de atuação prática, voltado para a questão da criança, em que fosse possível aplicar a experiência acumulada no Brizolão da Mangueira e os conhecimentos que estavam sendo construído no curso de doutorado na PUC-RJ.

Iniciava-se o processo de abertura democrática, criando um contexto de grande protagonismo para a sociedade civil organizada. Com isto, vivíamos um período de “boom” das organizações não governamentais. Voltavam para o Brasil importantes lideranças, até então exiladas, como Herbert de Souza (Betinho), Miguel Darci e Rubens Cesar Fernandes, propondo-se a contribuir para o fortalecimento das organizações sociais, e contando, inclusive, com financiamento internacional para isto.

Por outro lado, redigia-se uma nova constituição, seguida por leis orgânicas, o que representava uma oportunidade ímpar de contribuição da sociedade para se estruturar uma nova ordem jurídica para o país.

Participar desta efervescente realidade, ingressando no mundo do terceiro setor, através da fundação de uma ONG, era para mim uma demanda histórica irrecusável. Partir da “intenção ao gesto”, entretanto, seria um o caminho bastante difícil, uma vez que não contava com experiência, equipe, local de funcionamento, nem dinheiro para isto.

No próximo episódio vamos contar as estratégias utilizadas para a criação do Roda Viva, uma organização não governamental, com atuação em diferentes níveis. No nível prático, desenvolvia uma ação de atendimento educacional a crianças no Morro do Borel; no nível intermediário, uma atividade de produção e divulgação de conhecimentos; e finalmente, no nível macropolítico, participava dos movimentos ligados à Constituição de 1988 e ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Não percam!

 


2 comentários em "T2 | Ep 8 – A academia e o mundo das ONGs"
  • Tatiana Terry disse:

    Wanda, devorei de uma vez só toda sua história até aqui , e como aprendi coisas … A história desde a origem entremeada com as finas reflexões criticas sobre a sociedade ou políticas públicas que vieram depois, os sutis toques de humor referente à situações vividas no passado ou nossa surrealíssima situação atual deixam a leitura leve, próxima do cotidiano e das desigualdades abissais da cidade e do país . Quem dera Os gestores atuais tivessem um décimo de sua bagagem e humildade . Seus relatos me enchem de esperança, na real . Muita coisa pra fazer, então façamos ! Tem que transformar em podcast, são aulas !!! Que presente de registro , muito obrigada por isso, vc tem iluminado meus dias nessa pandemia , da sua eterna aprendiz, Tatiana

  • Reginaldo disse:

    Parabéns Wanda. Os temas tratados são expostos a céu aberto, acompanhados de soluções indicadas pelas boas práticas das teses escolhidas. Grande contribuição que oferece aos gestores públicos.

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Wanda Engel