Wanda Engel
Por WandaEngel -
[Temporada 1: O Governo Federal]
Tanto minha ida para a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro (SMDS/RJ), como o convite para o Governo Federal foram totalmente inesperados. Sem atuação político partidária, ambos constituíram escolhas técnicas.
O convite para a SMDS ocorreu em função da situação criada pela Chacina da Candelária – a exigência, por parte do Ministério Público, de existirem políticas públicas para darem conta do problema. Havia acabado de defender minha tese de mestrado e minha coorientadora, Regina de Assis, então secretária de Educação, sugeriu meu nome para conceber e implantar esta política.
Já o convite para o Governo Federal deveu-se à parceria estabelecida entre a SMDS e a Comunidade Solidária, para a manutenção de crianças na escola, através da oferta de cestas básicas. O resultado desta ação conjunta fez com que D. Ruth Cardoso indicasse meu nome para assumir a área de assistência social, no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Na verdade, meu contato direto com FHC havia sido mínimo e eu não tinha “indicação” ou apoio partidário de qualquer ordem. Devo minha “mudança de nível” (do municipal para o federal) a esta extraordinária mulher chamada Ruth Cardoso.
O convite foi inesperado. No dia seguinte ao Natal, estava trocando um presente, quando o telefone tocou. O ajudante de ordem anunciou que o presidente desejava falar comigo. Imediatamente me pus de pé. A chamada era um convite para assumir a Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS), antiga Secretaria de Assistência Social (SAS), recém alçada ao status de ministério.
Teria de resolver naquele momento, pois a composição do ministério deveria ser anunciada para a imprensa dali a poucos minutos.
Acabei aceitando o convite sem sequer ter falado com minha família que, apesar disto, apoiou totalmente minha decisão. Meu marido Roberto Aduan, meu amigo, meu porto seguro, foi o primeiro a dar a maior força.
O interessante em minha vida profissional foi sempre o fato de que eu não postulava nem fazia lobby para ser escolhida para os cargos. Isto me dava uma certa liberdade, pois não tinha de decidir em função de “patrocinadores”.
Uma certa confusão histórica: a SEAS e a Comunidade Ativa
Não é raro que as pessoas, mesmo as mais próximas, me identifiquem como sendo “a pessoa que trabalhou com Dona Ruth”.
Apesar de que teria sido uma honra e de somente ter sido convidada para o Governo F ederal por indicação dela, na realidade minha função à frente da Secretaria de Estado de Assistência Social era de caráter governamental, enquanto a Comunidade Solidária/Comunidade Ativa era uma organização da sociedade civil.
Ocorre que o primeiro ato do governo Fernando Henrique, em seu mandato inicial, havia sido a extinção da Legião Brasileira de Assistência (LBA), lócus histórico de atuação da primeira dama. As funções da LBA foram incorporadas à Secretaria de Assistência Social (SAS), que no segundo mandato, havia sido transformada na Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS).
A opção de D. Ruth foi a criação de uma ONG que desse apoio às políticas públicas, fora do aparato do estado. Esta organização, inicialmente denominada Comunidade Solidária, atuou durante todo o primeiro mandato, com base no Mapa da Fome e foco sua atuação no fornecimento de cestas básicas, que tinham, como fonte, o estoque regulador da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB).
No segundo mandato, a Comunidade Solidária transformou-se em Comunidade Ativa, com foco em desenvolvimento local integrado e sustentável (DELIS), ao lado de programas voltados para a capacitação de jovens (Capacitação Solidária), alfabetização (Alfabetização Solidária), protagonismo juvenil (Universidade Solidária) e qualificação e comercialização do artesanato (Artesanato Solidário). Desenvolveram-se também programas de promoção do voluntariado, por meio do apoio à criação de Centros de Voluntariado em todo o país.
Apesar de não haver ligação formal entre a Comunidade Ativa e a política pública desenvolvida pela SEAS, houve importante articulação, especialmente no Projeto Alvorada, sobre o qual falaremos detidamente no Episódio 7, e nos programas destinados à juventude. No Alvorada, o coordenador do Portal do Alvorada era também o líder do processo de desenvolvimento local, proposto pela Comunidade Ativa.
Agora, no gabinete e na foto!
No dia 1 de janeiro de 1999, lá estava eu na foto oficial do gabinete do segundo mandato do presidente Fernando Henrique. Éramos apenas duas mulheres: eu e Claudia Costin, nomeada Secretária de Estado de Administração.
Foto oficial da posse no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Aliás, a igualdade de gênero sempre foi uma questão não enfrentada pelo governo de FHC, apesar da firme atuação de D. Ruth nesta área. Após algum tempo, Claudia saiu do governo, restando apenas eu, como mulher, na equipe..
No intervalo de uma reunião de gabinete, na Granja do Torto, um jornalista me abordou, perguntando quais as vantagens ou desvantagens de ser a única mulher do grupo. Sem condições “físicas” de dar uma resposta mais adequada, retruquei que a vantagem mais imediata era o fato de não haver fila para o banheiro feminino. Não sei se ele percebeu o sarcasmo da resposta.
Tempos depois, foi nomeada Solange Jurema para a Secretaria de Estado da Mulher, também com status de ministra, voltando à existência de duas (!!!) mulheres no ministério de FHC.
Um pouquinho de história: a política de assistência antes de 1999
Muita gente pensa que tudo começa quando elas próprias entram em cena. Na verdade, muita água rolou antes que eu viesse a assumir a coordenação da política pública de combate à pobreza.
Não pretendo focalizar a fase em que a assistência tinha um caráter prioritariamente religioso, ou governamental, neste caso realizada pelas “primeiras damas”, através da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Neste tipo de iniciativa, que considerava a pobreza como fenômeno “natural”, e centrava a ação em suas consequências: fome e falta de acesso a bens de consumo, a resposta consistia, principalmente, na distribuição de cestas básicas ou de bens materiais.
O grande marco na mudança deste paradigma foi a Constituição de 1988 que definiu a assistência como direito, o que orientou a criação das leis complementares: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 e a Lei Orgânica de Assistência Social de 1993.
Numa fase anterior, focalizada na Temporada 2, tinha tido a oportunidade de participar da redação do ECA e de ser escolhida para compor o primeiro Conselho Nacional de Defesa de Crianças e Adolescentes (CONANDA).
No campo da assistência, a constituição definiu, como finalidade desta política pública, a erradicação da pobreza e da desigualdade, por meio da proteção, da garantia de direitos (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência) e da promoção, visando a autonomia.
Como se pode perceber, a proteção é definida, constitucionalmente, como o primeiro passo de um processo de promoção que deve culminar na autonomia propiciada pela inclusão produtiva.
Confesso que fico bastante irritada com o uso do termo “assistencialismo”, com o intuito de desqualificar a política de assistência. Só acham que a assistência é desnecessária, que pode desincentivar o pobre, e que é preciso “ensinar a pescar ao invés de dar o peixe”, aqueles cuja experiência de vida nunca permitiu que percebessem que ninguém aprende a pescar com fome!
Já no bojo da LOAS, tivemos a proposta da criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) de caráter descentralizado e participativo.
A exemplo da área de saúde, a articulação do sistema descentralizado estaria a cargo da Comissão Gestora Tripartite, em nível nacional, com representantes dos governos federal e estadual, e da Comissão Gestora Bipartite, em nível estadual, com participantes dos governos estaduais e municipais .
O caráter participativo seria propiciado pelos Conselhos de Assistência, nos três níveis, e pelos respectivos fundos.
Outro importante ponto de inflexão havia sido a extinção da LBA, em 1995, que representou o início da descentralização efetiva da política pública de assistência.
Por outro lado, surgiram os primeiros programas de transferência de renda, tanto os não condicionados, quanto os condicionados.
Como transferências não condicionadas destacavam-se o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a Renda Mensal Vitalícia e posteriormente a Aposentadoria Rural, sendo as duas últimas enquadradas no âmbito da previdência, apesar de serem, por seu caráter não contributivo, claramente programas assistenciais.
Criaram-se também programas de transferência condicionada de renda (TCR) em nível municipal e estadual (Campinas e Brasília) e, em 1996, a primeira TCR federal: o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
Até 1998 a política de assistência estivera a cargo da Secretaria de Assistência Social (SAS), vinculada ao Ministério da Previdência, sob a liderança de Lucia Vania Abrão.
Como Secretá ria de Estado, apesar de contar com o apoio administrativo e jurídico daquele ministério, a SEAS gozava de total autonomia e respondia diretamente à presidência da república.
Constituindo uma equipe
Uma instituição não é feita de normas, regras e ideias. Ela é constituída pelas pessoas que nela atuam. Assim, o primeiro passo era constituir uma equipe.
A exemplo de minha atuação no governo do Rio de Janeiro, tive “carta branca” para montar minha equipe. Apesar disto, em muitos momentos, foi preciso manter-me firme frente a algumas tentativas de indicações políticas para manter determinadas pessoas nos cargos ou para novas indicações. Por incrível que pareça, nunca tive de me curvar a estas pressões.
A montagem da equipe foi feita prioritariamente com os profissionais da antiga SAS. Como meu sucessor no Rio era alguém de minha equipe (Carlos Augusto de Araújo Jorge), a maioria conservou seus cargos e quase ninguém se animou a mudar para Brasília. Foram comigo apenas duas pessoas: minha assessora de comunicação (Nívea Chagas) e o vice-presidente do CMAS (Marcelo Garcia).
A manutenção da equipe que já estava no órgão foi fundamental para dar continuidade aos avanços da política de assistência. Certamente, continuidade com aperfeiçoamentos e adequações, mas nunca passando a borracha no passado.
Uma transformação não pode começar do zero, da terra arrasada. Tem que ser parte de uma evolução. Nada melhor para isto do que conservar grande parte da equipe anterior que deve ser conquistada para as propostas de aperfeiçoamento. Na verdade, é a chamada “burocracia de estado”, ou seja, os chamados funcionários de carreira, que permitem um seguro processo evolutivo nas políticas públicas.
Somente com a posterior criação da Secretaria Nacional de Planejamento e Avaliação pude contar com a colaboração de Sonia Silva, profissional de grande experiência em organismos governamentais e no terceiro setor. Esta secretaria representou a introdução de importantes diretrizes no processo de aperfeiçoamento: o planejamento integrado, a gestão para resultados, a capacitação continuada dos envolvidos e a avaliação do processo e dos resultados.
No Episódio 2, você vai saber sobre o papel institucional Secretaria de Estado de Assistência Social, suas novas diretrizes, a crucial mudança em sua estrutura e o os princípios que nortearam o redesenho dos programas: a centralidade na família e na mulher, a intersetorialidade e a organização por ciclo de vida. Não perca, na próxima quinta!
Que belo texto, Wanda. Objetivo, esclarecedor e histórico. Corro para continuar no episódio 2.
Genteeee que loucura kkk isso realmente funciona 🙂 Amei
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