Wanda Engel
Por WandaEngel -
Enfim, aos 19 anos eu era uma profissional do magistério. Depois de uma experiência como “professoranda”, em que já atuava como docente, iniciei a carreira de professora em escolas públicas, localizadas em bairros que ostentavam os piores IDHs da cidade: Acari e Irajá.
Apesar de se revelar uma certa discrepância entre a visão do “aluno ideal”, construída no período de formação, e o “aluno real” que encontramos após a formatura, eu adorava dar aula. Me sentia segura e tinha uma ótima relação com as crianças.
Concomitantemente, em 1964, ingressei na Universidade do Estado da Guanabara (UEG), atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi o ano, a partir do qual, as questões políticas passaram a dominar fortemente a agenda universitária.
Como a UEG ainda não dispunha de instalações próprias, funcionava no turno da noite, no prédio de uma escola privada no bairro da Tijuca.
Apesar de ter passado para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como esta oferecia o curso de Geografia apenas no horário diurno, e eu dava aulas neste horário, tive que optar pela UEG.
Penso que isto me “salvou” de participar, com maior intensidade, do movimento estudantil contra a ditadura. Embora grande parte de meus amigos da UFRJ tivesse convivido com a prisão e a tortura, a maioria dos alunos da UEG, cansados de um dia de trabalho, limitava-se a uma discreta atuação, que praticamente se resumia a algum tipo de panfletagem.
No meio do curso, já estava trabalhando em duas escolas públicas, dava aulas num pré-vestibular e cursava uma segunda faculdade, o Centro de Formação de Professores de Ensino Normal (CFPEN), criado no Instituto de Educação, do qual tive de acabar desistindo. Vivia exausta, sem ânimo nem tempo para atividades políticas.
Com isto cheguei politicamente “ilesa”, e muito mal formada, ao término de meu curso noturno de geografia, em 1967. Na verdade, o curso era de baixa qualidade e os professores, em sua maioria, desinteressantes e desinteressados.
Constatam-se aí os efeitos perversos da educação oferecida no chamado turno da noite. Se no ensino superior já se fazem sentir seus males, imagine no Ensino Médio. Constituindo-se, em tese, em opção para os estudantes adultos, que conjugam educação e trabalho, houve um aumento da oferta desta modalidade, que se estendeu para menores de 18 anos, não trabalhadores.
A baixa qualidade dos cursos noturnos vem sendo reiteradamente confirmada pelos resultados dos testes nacionais, como fruto de uma série de fatores, como horários não cumpridos e professores e alunos cansados.
O mais preocupante é que em 2018, cerca de 30% dos alunos do Ensino Médio estavam matriculados no ensino noturno, mesmo em estados ricos como São Paulo, enquanto apenas 17% dos jovens efetivamente conjugavam educação e trabalho. Uma medida possível seria a de reservar o ensino noturno exclusivamente para jovens, a partir de 18 anos, matriculados em cursos supletivos. A permanência no horário regular poderia ser assegurada por um tipo de benefício de transferência condicionada de renda, voltado especificamente para os jovens pobres.
Este também foi o período de namoro com meu marido Roberto Aduan, um estudante de engenharia, capixaba, filho de comerciantes libaneses, que tinha de fazer malabarismos para se manter no Rio de Janeiro, estudando na UFRJ, mesmo contando com uma pequena ajuda familiar.
Depois de um estágio na Suécia, quando foi possível guardar alguns dólares; da venda de um fusquinha velho, e do auxílio paterno (minha família não tinha nenhuma condição de ajudar), Roberto conseguiu guardar o dinheiro necessário para dar a entrada em um pequeno apartamento no Leblon. O restante era pago em prestações, pela chamada “Tabela Price”, que consumiam todo o salário do casal. Casamo-nos em 1969 numa cerimônia em que meus alunos, uniformizados, faziam ala, durante todo o percurso até o altar.
Casar e ter filhos me parecia um caminho natural, inquestionável. Não me lembro de ter feito efetivamente esta escolha, apesar de ter sido a melhor coisa que me aconteceu. Assim, dez meses depois de casada nasceu minha primeira filha (Flavia), 15 meses depois a segunda filha (Daniela) e dois anos e meio após, meu filho (Roberto).
A esta altura, eu já trabalhava, dando aulas de geografia no Ensino Fundamental II e na Escola Normal Carmela Dutra, no bairro de Madureira. Ambas bem distantes de minha casa, o que me absorvia muito tempo de deslocamento.
As crianças nasceram na década de 70, da qual não consigo lembrar um único filme, peça de teatro ou concerto musical. Nos primeiros tempos, pensei que nunca mais na vida conseguiria dormir, sensação que me assolou novamente, quando atingiram a adolescência, visto que, naquele tempo, ainda não havia telefone celular. Falando assim, parece que a constituição de uma família tivesse sido um pesadelo, o que é totalmente oposto à verdade. Construir uma família, ter como companheiro e cúmplice um homem especial, e acompanhar o crescimento e desenvolvimento de três filhos queridos, talvez tenha sido a experiência mais maravilhosa que eu poderia ter tido.
Meu marido, apesar de suas origens árabes, o que poderia representar um “DNA bem machista”, foi sempre muito parceiro “na dor e na delícia” de criar nossos filhos. Vez por outra aflorava algum componente um pouco mais autoritário, mas que encontrava rígida resistência. A verdade é que a relação se manteve com muita negociação, respeito e companheirismo por 56 anos, tendo sido interrompida apenas com sua morte repentina em 2019. Ainda inacreditável!
Seguindo minha própria experiência, e em função da condição econômica da família, fiz questão de que meus filhos também cursassem uma escola pública de qualidade, neste caso, o Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp/UFRJ).
O CAp/UFRJ ocupava, durante o dia, o prédio de uma escola estadual, que só funcionava à noite. Esta coabitação era um verdadeiro pesadelo. Ao serem divididas as responsabilidades pela manutenção do prédio, isto acabava por não acontecer. A escola caia aos pedaços, o banheiro era uma verdadeira pocilga e não havia carteiras suficientes para todos, mas os professores eram excelentes. Meus filhos adoravam o CAp e cresceram sem frescura, enfrentando condições pouco favoráveis com muito estoicismo. A relação entre as famílias dos alunos também era excelente. Até hoje um grupo de “mães do CAp” ainda faz parte do meu círculo de melhores amigas!
Ao final, todos ingressaram na UFRJ nos cursos de medicina, arquitetura e biologia, conjugando uma consistente formação acadêmica com efetiva responsabilidade social. Transformaram-se, posteriormente em profissionais respeitados, e me concederam a graça de cinco netos. Meu filho, doutor em biologia ambiental, já com uma substantiva produção científica, veio a falecer aos 30 anos, vítima de um problema cardíaco. Dor indescritível, perda insuperável.
Em 1972 participei de um concurso para de curso normal, e em 1974 concorri a mais um cargo no estado, o de professor de geografia, tendo obtido o melhor resultado de todo o concurso, o que me valeu uma certa projeção na mídia.
Por esta época, recebi o convite para assumir a função de supervisora pedagógica no Instituto de Educação, o que me fez retornar, sob outra condição, para a “minha escola”.
Nesta época, ainda existiam os catedráticos, meus antigos professores, e minha função era justamente a de coordená-los, o que acabou gerando um certo desconforto. Afinal eles historicamente eram os “donos” das disciplinas e não viam com bons olhos a criação de uma supervisão, hierarquicamente superior a eles, ainda mais liderada por uma ex-aluna.
A primeira reunião como supervisora deve ter sido uma das situações mais difíceis de minha vida profissional. O encontro havia sido marcado para o Salão Nobre, onde se destacavam os retratos de todos os ex-diretores, a partir de Benjamim Constant, o primeiro deles. Logo no início, certa catedrática, uma de minhas ex-professoras, me questionou sobre a real importância daquela reunião, pois se encontrava em Minas Gerais, e havia tomado um táxi apenas para poder participar. Depois desta “prova de fogo” acho que enfrentaria qualquer perrengue profissional!
O Instituto de Educação me proporcionou também a possibilidade de cursar uma pós-graduação lato sensu em Pedagogia e Civilização, na França. O programa focalizava o sistema educacional e a própria cultura francesa, incluindo visitas e excursões que, sem dúvida, contribuíram para ampliar meus conhecimentos pedagógicos e minha visão de mundo.
Serviu também para verificar minha fluência na língua, adquirida nas aulas de francês do IE, sem nenhuma contribuição de cursos específicos, inalcançáveis para mim, no período da adolescência. Mais uma vez, “Ave Instituto de Educação”!
Somente quando as crianças estavam um pouco mais velhas, em 1980, dei o primeiro passo no sentido de minha progressão profissional, iniciando um mestrado em educação na UFRJ. Na verdade, antes disto, havia feito um curso de complementação pedagógica na Universidade Gama Filho, para me habilitar à função de supervisora pedagógica.
O meu caso é ilustrativo de como a dupla jornada de uma mulher, especialmente na condição de mãe de crianças pequenas, interfere em sua escolaridade e em sua progressão profissional.
A situação fica ainda mais dramática no caso de mães adolescentes. Os dados mostram que a gravidez na adolescência constitui a primeira causa de abandono escolar, com todas as consequências decorrentes da baixa escolaridade.
A área de concentração do programa de mestrado era tecnologia educacional, o que não me impediu de fazer uma tese com o título: “Condições socioeconômicas: um álibi para o fracasso da escola?”.
Este trabalho envolvia duas escolas públicas, localizadas em uma mesma comunidade extremamente pobre (Vila Antares) em Santa Cruz. Uma delas apresentava excelentes resultados e a outra, desempenhos pífios, especialmente nas classes de alfabetização.
O estudo mostrava a importância da existência, na escola com melhores resultados, de uma equipe de direção e coordenação pedagógica que realmente acreditava que as crianças, independentemente de sua origem social, tinham condições de se desenvolver.
Por outro lado, na escola de baixos resultados, a equipe gestora tinha a “certeza” de que “famílias desestruturadas”, “desnutrição infantil”, “falta de apoio dos pais” e alguns outros estigmas associados à pobreza, impediam as crianças de aprender. Com isto, ficavam, durante praticamente todo o ano letivo, em “período preparatório”, sem efetivamente iniciarem o processo de alfabetização.
Este estudo reforçou, em mim, a crença na importância da gestão escolar para o alcance de bons resultados educacionais. Tal constatação acabou definindo, posteriormente, a escolha do foco de atuação do Instituto Unibanco. O programa Jovem de Futuro, concebido e validado em minha gestão, propunha-se justamente a oferecer condições para qualificar a gestão de escolas públicas de Ensino Médio.
A tese teve uma certa repercussão, o que proporcionou uma indicação para assumir a direção do Centro Cultural Comunitário de São Cristóvão, também conhecido como Brizolão da Mangueira. O Brizolão representou a pré-história dos CIEPs no Rio de Janeiro, e foi um ponto de inflexão em minha atuação como educadora.
No próximo episódio, vamos abordar a experiência de gestão do Centro Cultural Comunitário de São Cristóvão, também conhecido como Brizolão da Mangueira, a primeira unidade do Programa Especial de Educação, liderado por Darcy Ribeiro, que evoluiu para a proposta dos CIEPs. Não percam!
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