Wanda Engel
Por WandaEngel -
Em linhas gerais, a proposta pedagógica, construída pela equipe, baseava-se em alguns pressupostos básicos: a aprendizagem significativa, o uso do método científico, a organização curricular por projetos interdisciplinares, o jogo como instrumento de aprendizagem da matemática, o acesso e a produção cultural e artística (literatura, música, teatro e artes visuais) e as atividades esportivas, como instrumento pedagógico.
A esta altura, já estavam bem disseminadas as propostas de Paulo Freire sobre aprendizagem significativa. Opondo-se ao que ele chamava de educação bancária, este educador propunha que o processo se baseasse no universo das experiências dos educandos, de forma a dar significado ao aprendizado.
A experiência mais importante, nesta linha, foi a iniciativa de desenvolver o processo de alfabetização com um grupo de jovens, com idades entre 14 e 18 anos que, após inúmeras tentativas frustradas de aprender a ler, haviam se evadido da escola.
Naquele ano, a Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira – a famosa verde e rosa – havia se tornado a supercampeã do carnaval. Pelas normas então vigentes, havia uma campeã do primeiro grupo, outra do segundo e, dentre elas, uma supercampeã. A Mangueira ganhou este título importantíssimo, enchendo de orgulho todos os mangueirenses (incluindo eu mesma).
Neste clima de euforia, o samba enredo supercampeão foi utilizado como base para o processo de alfabetização dos jovens.
Bingo! Ao final do ano, depois de um trabalho brilhante da professora Ana Virgínia, estavam todos plenamente alfabetizados.
Ana Virgínia, jovem professora de porte altivo e beleza irradiante, ela mesma mãe de seis filhos, sendo um deles adotado, que na época acumulava a docência com a gerência de uma loja de luxo no shopping Rio Sul (até hoje não sei como), ainda tem clara lembrança de alguns destes jovens:
Maurício, o mais velho da turma, dizia -se filho do “dono do morro “. Certo dia chegou à escola com uma arma escondida no chapéu branco, que usava para mostrar que era poderoso. Conversamos, e ele se convenceu de que sua conduta estava equivocada. Segundo ele, devolveu a arma para “o lugar de onde nunca deveria ter saído” e voltou às aulas para realizar seu grande desejo: aprender a ler e escrever.
Dico era membro de uma família numerosa (13 irmãos e um agregado), pai alcoólatra e mãe faxineira. Inteligente, habilidoso, atrevido, sedutor, às vezes cavalheiro, tinha o claro objetivo de vencer na vida, mesmo que fosse necessário trapacear de alguma forma. Dico deu trabalho, mas se alfabetizou.
Daniel, calado, arredio, gago, teve de ser conquistado. Adorava testar nossas reações. Me pediu um gorro de tricô, “como se fosse pro meu filho”. Eu mesma fiz o gorro e o presenteei. Conheceu minha casa e a casa de meus pais. Chegou à conclusão de que o mais importante na vida não era ser rico e poderoso, mas ser amado, respeitado e ter um lar. Alfabetizou-se, sempre com seu gorro predileto na cabeça.
Josemar tinha vindo de outro município, para passar um tempo com os avós, por problemas com o tráfico. Também calado, educado e muito atento. Adorava eventos culturais e passeios ao ar livre.
Para orgulho geral, os alunos publicaram um livro, no qual cada um escrevia sua própria história.
Já em fevereiro de 1985 morreu o primeiro deles – Josemar – ao retornar à sua cidade de origem. O segundo foi Daniel, morto pela polícia, após participar de um assalto (não conseguiu “ser amado, respeitado e ter um lar”).
Segundo informações, 14 outros seguiram o mesmo destino, mortos em conflito com a polícia ou em guerras entre facções de narcotraficantes (a milícia ainda não havia chegado às comunidades).
Em 1988, quando já era professora da UERJ, fui procurada por Dico. Vinha pedir ajuda. Estava jurado de morte, tanto pelo comando do tráfico, quanto pela polícia, por conta dos rolos criados no exercício de suas conflitantes funções: traficante e X9 (informante da polícia). Pedia que lhe desse guarita na casa de campo de minha família, em um subúrbio do Rio. Eu tinha a certeza de que, se nada fizesse, ele seria o próximo. Conversando com meu marido, ele achou que não poderíamos nos negar a atender a este pedido. Dico seria acolhido por uma semana, até que conseguisse achar uma outra alternativa. Passados três meses e algumas notícias de roubos nas redondezas, cresceu a preocupação com a segurança de minha família. Estabeleci, então, como limite final, o domingo seguinte. No dia marcado, quando cheguei à casa de campo, não mais encontrei Dico, a televisão, o aparelho de som e outras “cositas” mais. Uma semana depois, se passando por meu afilhado, voltou para “completar o serviço”. Neste incidente, houve a intervenção de policiais que, ao saberem da história completa, se ofereceram para “dar um jeito definitivo no problema”. Frente à minha negativa veemente, ficaram irritadíssimos. Poucos meses depois, recebi a notícia da morte de Dico. Acabei assumindo, também, as despesas de seu sepultamento!
A Oficina da Natureza era quase um “laboratório científico”, com microscópios, aquários, terrários e material para experiências.
Os professores, aplicavam com os alunos o método científico: partiam de uma hipótese, prosseguiam com a testagem desta hipótese, sua confirmação ou negação, e no segundo caso, com a formulação de uma nova hipótese. Este foi o caminho seguido no seguinte caso.
As brigas entre as crianças eram uma constante. Prender a atenção do grupo era uma tarefa hercúlea. Em uma ocasião, a palavra mais ouvida na contenda era “merda”. A professora, então, provocou: já que gostam tanto de merda, queria saber a opinião de vocês: Sai merda de vocês? De mim também? E do “dono do morro”? E de Jesus Cristo? E dos coelhos e codornas? De onde vem toda esta merda? Como ela é produzida? Alguém acha que pode explicar? E daí partiu para a compreensão do sistema digestivo e excretor do homem e dos seres vivos, em um projeto em que os meninos se engajaram com muito entusiasmo, tendo a merda como motivação.
Os alunos desenvolviam projetos interdisciplinares que incluíam vários campos do conhecimento, alguns deles liderados pela “oficina da natureza”. Estes tinham como centro motivador, desde a criação de pequenos animais como codornas e coelhos, até a plantação de uma horta.
Vivíamos no período da construção do Sambródomo, que fazia grande sucesso junto à comunidade do samba. Assim, o local onde se criavam codornas era conhecido como codornódromo e o destinado aos coelhos, batizado pelos meninos de coelhódromo.
A produção da horta era usada na refeição das crianças que, entretanto, nunca admitiram fazer o mesmo com os animais do codornódromo ou do coelhódromo!
Era muito impressionante o envolvimento de todas as áreas nestes projetos interdisciplinares, especialmente os relacionados com o plantio ou a criação de animais.
Participar do nascimento e crescimento de seres vivos, ou seja, de um processo de criação e cuidado com diferentes formas de vida, parecia ser de enorme valor para aquelas crianças, criadas em um ambiente extremamente violento, convivendo cotidianamente com a morte. Era com enorme orgulho que apresentavam aos visitantes o produto de seu trabalho no manuseio da terra.
A equipe de matemática era uma das mais experientes. O grupo era oriundo, majoritariamente, do Centro de Ciências da Secretaria Estadual de Educação onde eram desenvolvidas metodologias de ensino da matemática, através de desafios e jogos.
Já haviam avançado bastante na concepção e produção de material didático que foi colocado à disposição do Centro Cultural Comunitário de São Cristóvão. Ou seja, dispúnhamos do que havia de mais avançado no ensino da matemática daquela época.
Atividades de literatura, música, teatro, dança e artes plásticas tinham centralidade na proposta pedagógica do Centro. Muitos projetos interdisciplinares de produção artística também foram desenvolvidos, integrando estas diferentes modalidades. Talvez o mais bizarro tenha sido o de “embelezamento do Centro”.
Em uma das Reuniões Gerais, foi apresentada a questão das instalações que, na opinião dos professores, pareciam sujas e mal cuidadas. Especialmente os corredores foram foco de discussão, sendo proposto um grande mutirão de “embelezamento do Centro”, em que cada turma seria responsável por conceber e pintar um mural, em um trecho previamente definido. A atividade de pintura seria o ápice de um projeto interdisciplinar, envolvendo literatura, música, teatro e artes plásticas.
Um professor, que havia faltado ao encontro, quis se inteirar do que havia sido decidido. A informação, “simplificada”, foi a de que as crianças iriam fazer pinturas nas paredes do Centro. Munido de galões de tinta amarela e vermelha, propôs a seus alunos que pintassem o que quisessem nas paredes da sala, e possivelmente se ausentou.
Na manhã seguinte, entrou em meu gabinete uma professora, apoplética, dizendo que iria pedir transferência, pois havia entrado em uma sala repleta de órgãos sexuais pintados nas paredes. Segundo ela, só de masculinos, havia 38 (!).
Neste dia, uma caravana de professores de outro estado visitaria o Centro. Pânico! A porta da sala foi lacrada. Posteriormente, longas conversas sobre arte foram feitas com os alunos, antes de a sala ser novamente pintada (de branco), por sugestão deles mesmos. Depois disto, nos murais, feitos nos corredores, preponderaram imagens religiosas!!! (ou 8 ou 80!).
Seguindo a nomenclatura em voga (coelhódromo, codornódromo), a sala passou a ser conhecida, entre os professores, como caralhódromo!
Quanto ao acesso a outras manifestações artísticas, a iniciativa que fez mais sucesso foi a dos “Golfinhos de Miami” (se é que se possa enquadrar tal espetáculo nesta categoria). Fato é que ganhamos entradas para assistir a este evento, em exibição na Barra da Tijuca. Conseguimos vários ônibus de uma empresa local e levamos mais de quatrocentos meninos e meninas da Mangueira à Barra, passando pelas praias da Zona Sul.
Dois aspectos foram muito marcantes nesta experiência. O primeiro foi a constatação de que a grande maioria dos alunos, apesar de morarem na Mangueira, relativamente próximo do centro do Rio, nunca haviam saído das proximidades de sua comunidade, não conhecendo inclusive o mar. O segundo foi a extrema discriminação que sofreram dos outros expectadores. Muitas mulheres seguravam suas bolsas e trocavam apressadamente de lugar, quando percebiam a presença das crianças.
As atividades do campo da literatura ficavam a cargo da equipe responsável pela Oficina da Palavra que funcionava em uma ampla biblioteca. Lá se realizavam, dentre outras, ações ligadas à contação de histórias e à produção de textos.
Era uma tarde chuvosa e as crianças pequenas assistiam à leitura de uma história. A personagem principal era uma linda princesa, loura, de olhos azuis e pele muito branca, com seu fantástico traje de muitas saias e o cabelo ornado com fitas e jóias. Os pequenos pareciam embevecidos, quando chegou um dos mais velhos, disposto a “pagar geral”. Distraiu-se, até que percebeu que, também ele, estava envolvido com a história. Seja para não perder a “pose de mal”, seja pela reação à imagem da “princesinha loura”, fato é que tomou a palavra e gritou: “Eu conheço esta princesinha. Já vi ela dando o c* lá no coreto do Jardim do Méier”. Coitada da princesinha, com tantas sainhas!
Para aquelas crianças, acostumadas à lei do mais forte, onde preponderava o uso da violência para a gestão dos conflitos, o esporte representava a oportunidade de trabalhar com a questão das normas, de forma lúdica.
Era também a área ideal para desenvolver os valores de amizade, igualdade, respeito, solidariedade, esforço, excelência e determinação.
Havia, por parte da equipe, a intencionalidade de trabalhar pedagogicamente, tanto com a consolidação destes valores, quanto com a conscientização sobre a importância de se respeitar as normas para o bom funcionamento de qualquer grupo social.
Por outro lado, os docentes tinham o cuidado de valorizar as habilidades positivas de cada um, ao invés de enfatizar suas carências.
Ao se sentirem reconhecidos e valorizados, crianças e jovens estreitavam seus vínculos afetivos com estes educadores. Com isto, os professores de educação física exerciam grande liderança entre os alunos, assumindo também importantes funções fora das quadras, como coordenadores e orientadores pedagógicos.
Os pressupostos pedagógicos do Brizolão e sua prática, com erros e acertos, serviram de inspiração para novas propostas do Plano Especial de Educação, incluindo a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e os Centros Integrados de Educação Pública, os famosos CIEPs.
No próximo episódio vamos tratar das relações do Brizolão com as escolas de origem de seus alunos, da convivência com os poderes locais, e da mudança de rumo na proposta do Programa Especial de Educação, que passa, do enfoque na complementação da escolaridade, para o da escola de tempo integral, através dos CIEPs.
Ao ver a chamada p o 6° episódio, pensei vou ler depois, porém, ao iniciar a leitura ñ consegui parar, cheguei a me transportar além do texto, transportei-me para a vida e o sentir daquelas crianças acolhidas para aprenderem a ler e muito mais do que isso a sentirem a Vida.