Wanda Engel
Por WandaEngel -
Na noite de 23 de julho de 1993, nas proximidades da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, aconteceu o que se passou a chamar “a chacina da Candelária”. Pouco depois da meia noite, ocupantes de um táxi e um Chevette atiraram contra dezenas de pessoas, em sua maioria adolescentes, que estavam dormindo nas calçadas, matando oito delas (6 menores) e ferindo várias outras.
Sob comoção geral, movimentaram-se vários órgãos de defesa de direitos, dentre os quais o Ministério Público que, em ação conjunta com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), determinou que os governos estadual e municipal do Rio de Janeiro tivessem uma política pública, voltada especificamente para crianças e adolescentes em situação de risco.
O então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, constatando a inexistência desta política em nível municipal, resolveu buscar alguém, com possibilidade de conceber e implantar a política pública que estava sendo exigida. Uma das pessoas consultadas foi Regina de Assis, então Secretária de Educação, que havia sido coorientadora de minha tese de doutorado na PUC. Regina indicou meu nome.
Certa manhã de dezembro de 1993, recebi um recado de Maria da Penha, minha empregada e fiel escudeira de décadas, dizendo que o prefeito havia telefonado e queria falar comigo. Certa de que se tratava de um engano (ou fabulação), respondi que, quando o Papa me ligasse, ela não se esquecesse de me avisar. Para total surpresa, recebi, no dia seguinte, uma ligação do gabinete do prefeito, comunicando que ele tinha urgência em falar comigo. Como estava saindo para a UERJ, propus passar pela prefeitura, que ficava justamente no caminho.
A proposta para assumir a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMDS) veio como uma bomba! Tratei logo de esclarecer que não tinha nenhuma filiação partidária, nem havia votado nele. Imediatamente retrucou que naquele momento não necessitava de votos, mas de minha colaboração no desenho e implantação de uma nova política de assistência social que priorizasse o atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua, como exigia o Ministério Público. Disse-lhe que precisaria pensar e consultar minha família, e pedi o prazo de uma semana para dar a resposta.
Como não dispunha de base político-partidária que me desse suporte, além da minha família, que me animou a aceitar o convite, resolvi consultar meus pares da sociedade civil. Parti para conversas com Betinho, Miguel Darci e Rubem César Fernandes, que me incentivaram fortemente a abraçar aquela oportunidade.
Voltei, uma semana depois, com reivindicações que considerava essenciais para o exercício do cargo: implantar uma política de parceria, através de convênios com organizações da sociedade, e ter “carta branca” na escolha da equipe. César Maia aceitou imediatamente as duas propostas e, no ato de minha nomeação, alguns meses depois, assinou um decreto delegando-me o poder de nomear, no âmbito da SMDS, sem a necessidade de sua aprovação.
Quem exercia o cargo, naquele momento, era Laura Carneiro que pretendia desincompatibilizar-se para concorrer a deputada federal. Assim, fiquei um tempo lotada no Gabinete do Prefeito até que se oficializasse minha nomeação.
Na verdade, o primeiro mandato do prefeito Cesar Maia revestiu-se de características sui generis. Sua inesperada vitória sobre Benedita da Silva ocorreu praticamente sem coligações e consequentes compromissos de campanha. Neste contexto, ele podia colocar em prática diretrizes de governo que preconizavam um secretariado eminentemente técnico, e administradores regionais mais ligados ao campo político. Esta segunda função era usada, inclusive, para a formação de uma nova geração de políticos que tinham aí sua oportunidade prática de gestão. Faziam parte do grupo dos chamados “prefeitinhos” Eduardo Paes e Índio da Costa. Por conta da diretriz técnica para a escolha do secretariado, tivemos, naquela primeira administração de César Maia, um verdadeiro “dream time”, formado por grandes nomes, como Maria Sílvia Bastos, Luiz Paulo Conde, Sérgio Magalhães, Helena Severo, Ronaldo Gazola e Regina de Assis. A mesma diretriz era usada para a direção de órgãos da administração pública, como por exemplo o Centro Cultural Calouste Gulbenkian, que contava com a liderança da importante artista plástica Thereza Miranda.
Com a “carta branca” em mãos, comecei a montar minha equipe. Os primeiros convidados eram profissionais que já haviam trabalhado comigo no Instituto de Educação – Olga Restum, no Roda Viva – Solange Magalhães, e na UERJ – Leda de Azevedo, doutora em educação, que desempenhou a função de subsecretária, durante os 5 anos de minha gestão à frente da SMDS (3 anos com César Maia e 2 anos com Luiz Paulo Conde). Além disto, no período entre o convite e a posse, tive a oportunidade de conhecer excelentes funcionários da SMDS que acabaram constituindo a grande maioria de minha equipe.
Considero um equívoco quando novas direções utilizam a estratégia da “terra arrasada” para a constituição de sua equipe. Este tipo de decisão causa uma nefasta interrupção na história da instituição e é, muitas vezes, responsável pelo atraso na formulação e implantação de qualquer proposta.
Esta nova equipe da SMDS também poderia ser considerada como um “dream time”, pois, além da competência e do comprometimento com a causa, primava pela alegria e pelo bom humor, essenciais ao enfrentamento do desafio que estava em nossas mãos: contribuir para a diminuição da pobreza e da desigualdade na cidade do Rio de Janeiro. Na verdade, tudo que se avançou, no equacionamento deste desafio, foi fruto do esforço e do trabalho coletivo deste grupo de profissionais.
O primeiro passo foi definir as diretrizes para a formulação da política pública de desenvolvimento social, com ênfase no atendimento a crianças e adolescentes vulneráveis.
Nunca é demais repetir que uma política não se resume a um amontoado de programas, sem a necessária organicidade. Na verdade, os programas devem ser fruto de um processo de concepção, que começa com a definição da função social daquela política, prosseguindo com a construção de princípios estratégicos.
Este conjunto de definições deve orientar um diagnóstico sobre a pertinência e efetividade dos programas existentes e a existência de lacunas. Só então, é possível constituir um conjunto programático que inclua os melhores programas, as propostas para completar as lacunas, e as iniciativas de outros setores e órgãos, consideradas essenciais.
No que se refere à função social da SMDS, a definição já estava implícita no próprio nome: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Apesar de ter como base a política de assistência, esta era considerada apenas como o ponto de partida para um processo de desenvolvimento social, voltado para a superação da pobreza, e somente alcançado por meio da articulação com as demais políticas sociais.
Assim, se configurava o primeiro princípio desta política: a intersetorialidade. Além deste, foram definidos como princípios: a multissetorialidade, através da parceria com setores sociais, incluindo o voluntariado; a descentralização e a territorialização, ou seja, o uso do território como lócus para integração das ações, visando o aumento do impacto.
Cesar Maia já havia introduzido a ideia da intersetorialidade, criando as chamadas macrofunções. Ele acreditava que o governo, apesar incluir inúmeras secretarias, exercia apenas 4 funções básicas: a administrativa, a financeira, a urbanística e a social.
Com esta premissa, foram criadas macrofunções, com vistas a integrar as ações das secretarias associadas a uma mesma função. Da macrofunção de políticas sociais, faziam parte as secretarias de educação, saúde, cultura, esporte e lazer, habitação, desenvolvimento social e, já no governo Conde, a de trabalho.
Se inicialmente, a coordenação deste espaço institucional cabia à educação, por sua centralidade no processo de desenvolvimento, num segundo momento, este papel coube à SMDS. Isto retratava a percepção de que o foco prioritário das políticas sociais deveria ser a população mais pobre e vulnerável da cidade.
Políticas intersetoriais são de difícil concepção, planejamento e execução. Na verdade, vão contra a lógica departamental, que coloca as ações públicas em silos incomunicáveis, com gestores que competem entre si, por poder e por orçamento.
Somente uma visão sistêmica da realidade permite compreender a multidimencionalidade do real, onde os fatores se interinfluenciam, numa intrincada rede de causalidades. Esta realidade exige uma ação intersetorial e multissetorial, que depende de estratégias colaborativas.
Tais estratégias demandam, por sua vez, estruturas próprias, como as macrofunções, e a liderança do “chefe de estado”, que precisa atuar com seu poder mobilizador e moderador. Como coordenadora da macrofunção de políticas sociais, senti na pele as dificuldades de engajar outros secretários que estavam em um mesmo nível de poder.
Em todas as etapas de minha vida profissional, a crença no valor da colaboração, dentro das instituições e dentre elas, sempre pautou minha atuação como gestora.
Se a intersetorialidade buscava a integração dentro da prefeitura, a política de parcerias tinha como foco a articulação com os diferentes setores da sociedade.
Na verdade, o próprio contexto do público-alvo das políticas de desenvolvimento social- indivíduos e famílias pobres e vulneráveis – exigia um nível de comprometimento com a causa, nem sempre encontrado entre funcionários públicos. Além disto, entidades filantrópicas, de cunho civil ou religioso, vinham historicamente atendendo a este público e acumulando conhecimentos sobre metodologias e estratégias específicas de ação. Assim sendo, em muitos casos, o papel do estado deveria ser o de apoiar, qualificar, acompanhar e avaliar o atendimento oferecido por estas organizações sociais, ao invés de prover diretamente os serviços. Além disto, o estabelecimento de parcerias permitia maior rapidez na implantação da nova política.
Ao longo do tempo foi se consolidando uma visão totalmente negativa das ONGs. Termos como “entidades pilantrópicas” começaram a refletir um processo de demonização deste importante ator social. Na verdade, é inegável a importância de sua contribuição nos campos da assistência, da saúde, da cultura ou do meio ambiente, exercendo atividades que vão desde a advocacy, ao apoio técnico, à experimentação de novas tecnologias, ou à prestação de serviços. É claro que, como em todos os setores, há “grupos do mal”, mas, também neste caso, a generalização pode gerar efeitos extremamente deletérios.
Daí que a proposta era a de estabelecer convênios com organizações da sociedade civil, em um processo que incluía a identificação de boas práticas, a definição de critérios de seleção e o estabelecimento de padrões de qualidade e de metas, que permitissem o monitoramento e avaliação dos serviços prestados. Nesta perspectiva, foram assinados convênios com centenas de ONGs.
Cientes da enorme importância do voluntariado na qualificação de políticas públicas de desenvolvimento social, foi inicialmente criada uma Central de Voluntariado da Cidade do Rio de Janeiro, gerida pela SMDS. A iniciativa não avançou muito.
A ideia de voluntariado ainda se encontrava muito associada à filantropia religiosa ou a “coisa de americano ou de dondoca”. Além disto, uma iniciativa da prefeitura era vista como “chapa branca”, talvez visando ganhos políticos, o que afastava alguns dos que desejavam colaborar.
Nesta ocasião surgiu uma proposta do Comunidade Solidária, capitaneada por Ruth Cardoso e apoiada pelo BID, com vistas a fomentar a criação de Centros de Voluntariado em todo o Brasil.
Frente a esta perspectiva, resolveu-se abortar o Centro de Voluntariado da Cidade do Rio de Janeiro e apoiar a criação do Rio Voluntário, centro de voluntariado com institucionalidade de ONG, sob a direção de Heloísa Coelho. Esta organização, que mobilizou, para a composição de seu conselho, lideranças políticas, econômicas, da sociedade civil e do mundo artístico, teve um papel importantíssimo na atuação de voluntários nos principais programas desenvolvidos pela SMDS.
A intersetorialidade e a multissetorialidade exigiam uma descentralização administrativa da SMDS. As secretarias de educação e saúde já estavam descentralizadas, em função das chamadas Áreas de Planejamento (APs).
Neste mesmo modelo, foram criadas dez Coordenações Regionais de Desenvolvimento Social (CRDSs), num processo que enfrentou, como qualquer mudança na estrutura de um órgão, fortes resistências. Em primeiro lugar, funcionários deveriam ser deslocados para as regiões. Em segundo lugar, era preciso garimpar espaços físicos adequados para o funcionamento das CRDSs, de preferência nas proximidades de comunidades pobres, o que realmente não foi tarefa fácil. Finalmente, os profissionais que deveriam assumir as coordenações necessitavam de capacitação específica na área de gestão. Em resumo, não tínhamos as condições básicas para descentralizar, mas tínhamos certeza da necessidade de fazê-lo e muita pressa.
A descentralização administrativa, mesmo “feita na marra”, e muitas vezes de forma improvisada, permitiu que se conseguisse aumentar o foco nos problemas de cada região, promover a real integração intersetorial, especialmente com as áreas de educação e saúde, além identificar e mobilizar parceiros locais para concretizar a proposta multissetorial da política.
Às vezes penso na possibilidade da criação, no Rio de Janeiro, de coordenações regionais de políticas sociais, reunindo, em um mesmo espaço físico, pelo menos os setores já descentralizados, como os de educação, saúde e assistência. Isto poderia fomentar concretamente a integração das ações destas políticas na região, contribuindo, sem dúvida, para aumentar o impacto dos resultados.
Esta estratégia foi essencial também para a instalação das unidades de atendimento – os Centros Municipais de Atendimento Social Integrado (CEMASIS). A proposta dos CEMASIS, da qual falaremos mais tarde, estava intimamente ligada à ideia de oferta articulada de serviços aos membros de famílias pobres, em diferentes etapas do ciclo de vida. Por outro lado, muitos deles faziam parte do chamado “sistema de retaguardas”, destinado ao abrigamento de grupos de extremo risco, como população em situação de rua (crianças, adolescentes e famílias) e vítimas de violência (crianças e mulheres).
Para obter maior impacto da política de desenvolvimento social, buscou-se, inicialmente, organizar os programas da SMDS, voltados para famílias pobres, utilizando a metodologia dos ciclos de vida. Assim, criaram-se “clusters” programáticos de atendimento às etapas de maior vulnerabilidade: primeira infância, crianças e adolescentes, jovens e idosos.
Para viabilizar a articulação com os programas das outras secretarias, que compunham a Macrofunção, foi proposta a utilização da mesma metodologia, para organizá-los. Assim, foi possível alinhar programas de desenvolvimento social, educação, cultura, esporte e lazer e habitação, focados em cada uma das etapas do ciclo de vida.
Era fundamental, entretanto, ir além da articulação programática, e promover a integração concreta das ações. Buscou-se, então, utilizar o território como lócus para esta integração.
Foram então definidos, como territórios prioritários, as comunidades beneficiadas pelo programa Favela Bairro, liderado pela secretaria de habitação, sob a direção de Sérgio Magalhães. Em termos de território, o foco inicial foi o Complexo do Jacarezinho e com relação aos ciclos de vida, a prioridade recaiu sobre a primeira infância.
Na verdade, avançou-se pouco nesta tentativa, por conflitos típicos das estratégias colaborativas: disputas pelo poder, pelo crédito e pelo orçamento. Talvez o principal entrave tenha sido, como já foi mencionado, o insuficiente poder convocatório de um dado secretário sobre seus pares. Com certeza os resultados teriam sido diferentes se o próprio prefeito tivesse assumido a liderança do processo.
Oriunda dos movimentos ligados à elaboração das leis complementares, um dos meus focos mais importantes era a implantação dos sistemas por elas preconizados.
Nesta direção, foram criados o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e o Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), ambos paritários e de caráter deliberativo. Foram também fortalecidos conselhos de caráter consultivo, como o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência e o Conselho de Defesa do Negro.
A fragmentação, observada nas políticas públicas, também ocorre no campo da defesa dos direitos. Assim, proliferam os conselhos, tanto os oriundos das leis orgânicas (CMDCA e CMAS), quanto os criados por decreto, com função consultiva. Nas cidades, convivem conselhos voltados para os direitos do negro, do portador de deficiência, do idoso, da mulher, do LBGTQIA+, com pouquíssima articulação entre eles. Fico imaginando o que faria uma mulher, idosa, negra, homossexual e com alguma deficiência, para dar conta de participar de tantos conselhos! No Rio, todas as tentativas para integrá-los em um único “conselho de direitos” foram sempre rechaçadas, com o argumento da diversidade dos temas. Ocorre que, ao fim e ao cabo, todos têm o mesmo desafio: transformar, em igualitária, a lógica estrutural que considera o diferente como inferior, e “merecedor” de um processo de discriminação, de exclusão, de criminalização e até de extermínio. A fragmentação, com certeza, contribui para diminuir o poder de impacto das diferentes facetas desta luta.
O desafio mais complexo foi o da implantação dos Conselhos Tutelares. Teriam de ser criados 10 conselhos, um para cada Área de Planejamento, com membros eleitos em pleito universal. O problema era que a população não tinha a menor ideia do que se tratava, o que dificultava enormemente o processo de mobilização, tanto de eleitores, quanto de candidatos.
A saída foi envolver Xuxa Meneghel, o maior sucesso da televisão naquele momento, que se propôs a gravar, de forma voluntária, um spot, explicando o que eram os Conselhos Tutelares e convocando a população para participar da eleição. A TV Globo veiculou a mensagem, também gratuitamente e, depois de um árduo trabalho de divulgação e de mobilização de candidatos, realizado pelas coordenações regionais, foram eleitos e empossados os primeiros conselheiros tutelares do Brasil. (Ufa, os baixinhos agradecem!).
Com isto estavam dadas as bases para se conceber e implantar uma nova base programática para a SMDS, tanto para os grupos de alta vulnerabilidade, como população em situação de rua, crianças e mulheres vítimas de violência e pessoas com deficiência, como para os membros de famílias pobres e extremamente pobres, em suas diferentes etapas do ciclo de vida.
O próximo episódio focaliza o conjunto de programas, implantados pela SMDS, e voltados para os grupos de alta vulnerabilidade. Vamos falar, dentre outros, do “Vem prá casa”, com foco nos diferentes tipos de população de rua e do “Família acolhedora”, para crianças vítimas de violência. Não percam!
Muito orgulho de ter participado desse momento histórico para a política da assistência social na cidade do Rio de Janeiro .
Uma experiência única sob a batuta de uma verdadeira mestra. Honrado por ter feito parte do time.
Sua proposta e confiança nos profissionais se transformou numa verdadeira revolução e um desafio para todos. Mas valeu a pena. Nossa coragem, envolvimento e gestão foi um sucesso! Tenho orgulho de ter feito parte de sua equipe! ??