Wanda Engel

Por DanielaEngel Aduan -

A atual conjuntura descortina, novamente, os problemas urbanos das nossas favelas, aos olhos da sociedade carioca. Esta cortina geralmente se abre em momentos pontuais e marcantes, como quando a nossa cidade se torna anfitriã de grandes eventos ou quanto as chuvas torrenciais desencadeiam a descida, pelas ladeiras, da lama, esgoto, lixo, casas e vidas, “atrapalhando o tráfego”. 

Apesar dos limites físicos e subjetivos entre a cidade formal e informal, a pandemia mostra que o vírus não respeita estas barreiras. Para o vírus, a cidade é única. Mas é na favela, onde vivem 22% da população, que o peso das mazelas, geradas por este vírus, se torna mais grave. São famílias hoje expostas a todos os tipos de riscos: financeiros, de saúde, educacionais e ambientais, que contribuem para a disseminação e para o aumento do número de mortos. 

A sociedade carioca enxerga este cenário, se mobiliza através das redes sociais, e inicia rapidamente um conjunto de ações de auxílio. Mas esta ajuda, apesar de extremamente necessária, tem fôlego curto. São ações paliativas.

Cientistas preveem que estas pandemias poderão ficar mais frequentes. Por isso, se fazem necessárias ações urgentes para mitigar estes problemas. A questão é: Quais ações e instrumentos podemos lançar mão para preparar estes territórios para enfrentarem os novos riscos do nosso planeta, de uma maneira digna e eficiente?

Olhando o passado, vemos que, na década de 90, houve uma curva ascendente de ações para a melhoria da qualidade de vida dos moradores das favelas. Com base nos princípios e demandas dos movimentos que lutavam pelo direito à cidade, foi criado em 1994 o Programa Favela Bairro. Foi o primeiro programa de urbanização de favelas de grande impacto na cidade do Rio de Janeiro. Hoje, contamos com 147 favelas atendidas por este Programa, em um universo de 1018  favelas.

O Programa Favela Bairro, coordenado pela Secretaria Municipal de Habitação (SMH) e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), objetivava a integração das favelas à cidade, através da implantação da infraestrutura urbana e de equipamentos para serviços públicos. 

As obras do Favela Bairro modificaram, sem dúvida, qualitativamente a paisagem urbana das favelas contempladas. Incluíram conexões viárias, construção de praças e áreas de permanência arborizadas, e principalmente, obras de saneamento. 

Serviu de modelo para outras cidades e é considerado, pelo BID, um exemplo de política pública de combate à pobreza e à miséria. Mas foi um programa que atuou somente nas áreas públicas. As moradias não foram contempladas no escopo dos serviços. Acreditava-se que as ações nos espaços públicos iriam motivar a melhorias das áreas privadas. Alguns moradores até melhoraram suas fachadas, mas os problemas das construções são muito mais complexos, incluindo super adensamento construtivo, umidade, falta de iluminação e de ventilação, infiltrações, etc. 

Institucionalmente, o Programa Favela Bairro foi muito importante para a consolidação e instrumentalização da Secretaria de Habitação, criada no governo do prefeito Cesar Maia. Na época, por conta do grande investimento financeiro, a Secretaria consolidou um ótimo quadro técnico, que coordenava grupos de trabalho com representantes de vários outros órgãos, para as ações no âmbito das favelas. 

A Prefeitura do Rio, entretanto, pecou no processo de manutenção das intervenções. As favelas, que antes do Favela Bairro não faziam parte sequer dos mapas da cidade, depois das obras, continuaram fora da rotina institucional de manutenção dos espaços públicos. Hoje, muitas favelas, contempladas nos “tempos áureos” do Favela Bairro, estão com o ambiente urbano bastante degradado e com equipamentos públicos fechados. 

 O sucesso do Programa Favela Bairro motivou investimentos federais de grande vulto para urbanização de favelas. No Rio, este financiamento chegou através dos governos municipal e estadual, pelo PAC Favelas (Programa de Aceleração do Crescimento com foco nas favelas). 

Junto com os volumosos investimentos, entretanto, vieram os interesses das grandes empreiteiras. Sem os parâmetros do BID e com o aumento dos interesses econômicos, os grandes complexos de favelas tornaram-se a “bola da vez”, com intervenções megalômanas que incluíam teleféricos, elevação de linha férrea etc. 

A partir de 2010, a curva ascendente das ações voltadas para o processo de urbanização de favelas, que já estava bem mais branda do que na década de 90, sofreu uma queda brusca nas ações da Prefeitura, especialmente por ocasião do início dos investimentos de preparação dos megaeventos (Copa e Olimpíadas).  

Por outro lado, as ações do Governo do Estado, nesta área, foram paralisadas quando o governador foi preso por corrupção, possivelmente motivada, em parte, pelos grandes contratos referentes às intervenções megalômanas.   

O governo federal, numa visão dicotômica, também diminuiu muito os investimentos em urbanização de favelas, quando resolveu focar somente em ações de provisão de moradias, como no Programa Minha Casa Minha Vida.

Ainda em um período pré pandemia, o Governo do Estado retomou o tema da intervenção pública em favelas, com o lançamento da Programa Comunidade Cidade, na Rocinha, contando com um investimento de 2 bilhões de reais. 

Pandemias descortinam problemas, mas a crise produz a oportunidade de repensarmos o contexto habitacional, urbanístico, social e econômico de nossas favelas.

O Rio já possui uma grande bagagem de experiências e um grupo capacitado de projetistas, servidores públicos, pesquisadores, agentes sociais e lideranças locais, com vivência no processo de transformação urbana das suas favelas. 

Aprendemos, também, que somente com esforços conjuntos entre diferentes setores, e entre Prefeitura (responsável pela manutenção), Governo do Estado e Governo Federal, conseguiremos enfrentar a escala e a complexidade dos problemas escancarados pela pandemia. 

Neste momento, se faz urgente o planejamento das políticas públicas para o período pós pandemia, mas olhar para o passado e ajustar conceitos pode ser um bom começo.

Daniela Engel Aduan Javoski é mestra em urbanismo, fundadora da Arquitraço, com vasta experiência em urbanização de favelas.


2 comentários em "Favelas cariocas pré e pós pandemia"
  • Sylvia Rosalem disse:

    Reflexão e propostas muito úteis para questões que não podem mais ser adiadas – com ou sem pandemia !

  • José de Anchieta Nobre de Almeida disse:

    Perfeito diagnóstico historico

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