Wanda Engel
Por WandaEngel -
Como já foi dito no episódio anterior, nosso objetivo na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) era o de consolidar uma rede de proteção social, voltada para as famílias mais pobres, que lhes oferecesse condições básicas para a superação de sua situação de pobreza. Para isto, além de propostas para os grupos extremamente vulneráveis, foram concebidos programas para os membros destas famílias, em diferentes etapas do ciclo de vida. Assim, além da faixa da primeira infância, já focalizada anteriormente, foram estruturadas ações programáticas para crianças e adolescentes, jovens e idosos.
No grupo de crianças e adolescentes, o principal foco era a inserção, permanência e bom desempenho escolar. A crença era a de que, somente garantido às crianças pobres o término de sua educação básica, com bons resultados, seria possível que suas famílias viessem a sair da pobreza, de forma mais sustentável.
Assim, ao lado do apoio a entidades, que desenvolviam programas de complementação da escolaridade, visando a melhoria do desempenho (a exemplo do trabalho desenvolvido no Brizolão da Mangueira), iniciou-se uma ação de incentivo à permanência das crianças na escola, através da oferta de uma cesta básica para suas famílias.
Ocorria que, até aquele momento, os programas voltados para famílias pobres focalizavam, basicamente, os sintomas da pobreza, especialmente o combate à fome. Assim, a prefeitura do Rio de Janeiro, como inúmeras outras, tinha um programa de distribuição de cestas básicas, intermediada pelos presidentes das associações de moradores, cada vez mais envolvidos com o tráfico de drogas.
Esta era também a proposta inicial do Comunidade Solidária, liderado por Ruth Cardoso, que utilizava, para composição de suas cestas, alimentos oriundos do sistema regulador da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), especialmente feijão, arroz e farinhas.
A pergunta que se impunha era: Por que não integrar as duas iniciativas e dar-lhes um novo propósito?
A proposta foi, então, a de enriquecer o conteúdo das cestas do Comunidade Solidária, com proteínas (carne seca, leite em pó e sardinha) e utilizá-las como instrumento de incentivo à permanência das crianças pobres na escola.
As cestas eram usadas, também, para fidelizar os portadores do vírus da tuberculose aos longos processos de tratamento médico. Podia-se perceber, claramente nesta proposta, a efetivação do princípio da intersetorialidade, ou seja, a utilização de um benefício da área da assistência (distribuição de cestas básicas), para enfrentar um desafio da educação (evasão escolar) e da saúde (abandono do tratamento e recrudescimento da tuberculose).
Firmado o convênio, o próximo passo seria identificar os beneficiários. No caso da saúde, eram os portadores do vírus da tuberculose, sendo, portanto, facilmente identificáveis. Os agentes distribuidores seriam os centros de saúde.
Na vertente da educação, entretanto, a forma de identificação dos beneficiários e o agente distribuidor precisavam ainda ser definidos.
Decidiu-se, então, que o foco seriam as famílias dos alunos das escolas públicas de ensino fundamental, localizadas em áreas de grande concentração de pobreza, que registrassem altos índices de evasão.
Identificadas as escolas, por meio de dados estatísticos disponíveis, restava determinar a estratégia para seleção dos beneficiários em cada uma delas. Para isto, pensou-se inicialmente em utilizar a renda familiar per capita. Ocorria que a maioria da população pobre se encontrava no mercado informal, não dispondo de comprovante de renda. Utilizar próxis de pobreza era impensável, pois exigiria um processo caro e demorado de visita domiciliar a todos os alunos daquelas escolas, para verificar características habitacionais e a existência de bens de consumo que tipificassem, ou não, uma situação de pobreza.
Optou-se, então, por deixar a identificação dos beneficiários sob a responsabilidade das direções das escolas. Também com base nos dados estatísticos disponíveis, foi possível calcular aproximadamente quantas eram as famílias pobres em cada uma das escolas selecionadas. Com este dado, a equipe de direção identificava as “suas famílias pobres” e a dava publicidade à escolha, permitindo o exercício do controle social, por parte da comunidade escolar.
A estratégia de confiar ao gestor a identificação dos beneficiários de um programa de assistência, tomando por base dados estatísticos, iria ser novamente utilizada, por ocasião do Cadastro Único das Famílias Pobres (CadÚnico). Naquela oportunidade, atribuiu-se, aos prefeitos, a responsabilidade pela seleção das famílias pobres de seu município, como relatado no Episódio 11 da Temporada 1.
As “cestas enriquecidas” eram mensalmente distribuídas nas próprias escolas e nunca tivemos conhecimento de nenhum tipo de constrangimento por parte das famílias beneficiadas. A maioria das escolas aproveitava esta ocasião para realizar reuniões de pais e responsáveis, sempre muito concorridas.
Vivíamos, naquele momento, o recrudescimento da disseminação do vírus da AIDS, que extrapolava os tradicionais grupos de risco e atingia heterossexuais, especialmente mulheres pobres. Como parte da campanha de prevenção, o Ministério da Saúde enviou uma grande quantidade de preservativos, para serem distribuídas junto com as cestas básicas. Em uma conta simples, chegou-se à conclusão de que daria para distribuirmos 8 camisinhas por mês, para cada família, durante o período da campanha. Um repórter, então, me pergunta o porquê daquele quantitativo. Ocorre que, naquela semana, havia saído uma reportagem sobre frequência de relações sexuais na população do Rio de Janeiro. Para não perder a piada, respondo que, segundo a matéria, a média seria de em uma vez por semana. Assim, a definição do quantitativo devia-se ao fato de que queríamos, além de propiciar uma alimentação rica em proteínas para as famílias pobres, aumentar o nível de prazer daquelas pessoas. O pior foi que ele acreditou!!!
Este programa foi um dos primeiros a utilizar incentivos (neste caso cestas básicas) para a promover a permanência de crianças na escola, e com isto aumentar o capital humano das novas gerações de famílias pobres. Era tipicamente uma proposta de “transferência condicionada de cestas”, para o qual a frequência escolar representava uma condicionalidade, antes mesmo dos conhecidos programas “Bolsa Escola” de Campinas e de Brasília.
Os técnicos da SMDS, responsáveis pela proposta desta “cesta escola” atuaram, como consultores, na concepção do Bolsa Escola de Brasília, implantado na gestão de Cristóvão Buarque.
Apesar da crucial importância da juventude no processo de reprodução da pobreza, a SMDS não tinha nenhum programa voltado para esta etapa do ciclo de vida.
Na verdade, se quisermos quebrar o chamado “ciclo intergeracional de pobreza”, segundo o qual um jovem pobre, privado das condições mínimas de desenvolvimento pleno de suas potencialidades, acaba abandonando a escola, entrando despreparado no mercado de trabalho (informal ou marginal) e constituindo uma nova família, muitas vezes mais pobre que a de origem, é fundamental que se invista na juventude mais vulnerável.
Os dados de 2020 sobre o tema mostram que, de 100 crianças matriculadas na escola, apenas 64 terminam o Ensino Médio (EM), somente 18 têm educação profissional e 21 acessam o Ensino Superior. Dos 36 que não completam sua educação básica, a grande maioria é pobre, negra ou parda. O grande gargalo é o Ensino Médio que sofre com os problemas de alta defasagem idade/série, baixo desempenho e evasão. Como consequência, a taxa de escolaridade de jovens entre 18 e 29 é de apenas 11,3 anos. Estudo realizado pelo INSPER sobre evasão escolar, coordenado por Ricardo Paes de Barros, chegou a resultados aterradores. Os jovens que se evadem perdem 4 anos de vida em relação aos que completam o EM e ganham de 20% a 25% menos. Por outro lado, cada queda de 1% na taxa de evasão representa um decréscimo de 550 homicídios. Finalmente, o Brasil perderia R$ 214 Bilhões de reais por ano (3.5% do PIB) com a evasão escolar dos jovens.
Apesar de ainda não dispormos, naquela época, de dados tão contundentes, sabíamos da importância de criar uma política para a juventude pobre do Rio, como parte da política de Desenvolvimento Social. Os programas concebidos e implantados para esta fase também se pautavam nos princípios da intersetorialidade, multissetorialidade e descentralização (nem eu mesma aguento mais repetir isto, mas acho importante enfatizar a necessidade de existirem princípios orientadores, para a formulação de políticas públicas!).
Além disto, tomávamos, como premissas básicas, a necessidade de se incentivar e apoiar o poder transformador e mobilizador da juventude, promovendo o chamado protagonismo juvenil; de se propiciar o acesso à renda, visando um patamar mínimo de autonomia financeira; de se definir o “grupo” como unidade de atuação, e de se utilizar a cultura como instrumento de promoção humana econômica e social.
O conjunto de programas voltados para a juventude fazia parte do que se chamou “Iniciativa Rio Jovem” que incluía: o Agente Jovem de Desenvolvimento Social, o Rio Funk e os Centros da Juventude.
O programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social era uma proposta de protagonismo juvenil que capacitava jovens pobres para atuarem, em grupo, como agentes de desenvolvimento social em suas próprias comunidades. Estes jovens faziam jus a uma “bolsa” e contavam com o apoio de um coordenador, que era um jovem da comunidade, com maior nível de escolaridade.
Seus principais objetivos eram: incentivar a participação do jovem, no enfrentamento de questões que afetavam sua comunidade; fortalecer uma identidade grupal positiva; oferecer, diretamente para o jovem (e não para a mãe, como no Bolsa Família), uma renda mínima, que permitisse a satisfação de suas necessidades básicas de consumo (evitando que ele abandonasse a escola em busca desta renda); incentivar a permanência na escola (o jovem era recrutado na escola e a condição básica para estar no programa era nela se manter); além de desenvolver habilidades demandadas pelo mundo do trabalho (iniciativa, responsabilidade, trabalho em equipe, comunicação e criatividade).
Este programa foi realizado no Rio, em parceria com o Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável (CIEDS) e posteriormente implantado, em nível federal, em parceria com diversas ONGs, nas modalidades de agente jovem de saúde, meio ambiente, direitos humanos e segurança pública, estes como parte do Plano Nacional de Segurança Pública. Os agentes jovens tiveram um papel de destaque no Projeto Alvorada e na implantação do Cadastro Único das Famílias Pobres, como abordado na Temporada 1.
O Funk começava a ser o ritmo e a dança mais característicos das comunidades pobres do Rio de Janeiro. Apesar de ser alvo de muito preconceito, iniciava sua expansão “do morro para o asfalto” demonstrando grande possibilidade de se tornar importante nicho de trabalho para a juventude pobre.
O Rio Funk se propunha, então, a capacitar os jovens para atuarem como produtores culturais, nas especialidades ligadas à música, artes visuais, literatura e promoção de eventos, tendo como foco as comunidades onde o funk vinha ganhando espaço.
Os instrutores eram profissionais, em sua maioria moradores das próprias comunidades e a condição para participar do programa também era o acesso e permanência na escola.
As diferentes modalidades do Iniciativa Jovem necessitavam, entretanto, de um espaço físico onde pudessem ser realizadas. Inicialmente este espaço era fruto de parcerias com associações de moradores, clubes ou escolas de samba, que cediam seus espaços para este fim. Com o programa Favela Bairro, foi possível incluir a construção de Centros Municipais de Atendimento Social Integrado (CEMASIs) que destinavam um espaço específico para o funcionamento de Centros da Juventude.
Nestes Centros da Juventude aconteciam, além dos três programas da Iniciativa Jovem, outras propostas, como capacitação profissional, e formação geral para o mundo do trabalho.
A governança dos Centros da Juventude era participativa, incluindo funcionários da SMDS e representantes dos próprios jovens.
Tradicionalmente a política de assistência social, voltada para a faixa etária dos idosos, se resumia ao apoio a entidades que ofereciam abrigo a velhos pobres.
Inspirada no lema do atendimento à infância – “lugar de criança é na família, na escola e na comunidade” – acreditava-se que lugar de idoso é na família e na comunidade. Assim, a proposta da política de desenvolvimento social era oferecer condições para esta permanência, através de Centros de Convivência de Idosos.
Funcionando como unidades de atendimento-dia, estes centros promoviam atividades culturais, esportivas e de geração de renda para idosos pobres que desfrutavam de um mínimo de autonomia.
Eles representavam importante estratégia, não somente para a melhoria das condições gerais do idoso, com reflexos importantes para a política de saúde, como para que os membros da família (especialmente as mulheres) tivessem a possibilidade de se inserir no mercado de trabalho.
Um dos grandes desafios das políticas sociais, especialmente aquelas com foco na diminuição da pobreza, é o de oferecer aos membros adultos das famílias que assumem a função de cuidadores de vulneráveis (crianças, pessoas com deficiência, idosos, doentes mentais, doentes crônicos), majoritariamente mulheres, tenham as condições mínimas para atuarem no mercado de trabalho. Nestes casos, a oferta de creches em horário integral, centros de atendimento dia a portadores de deficiência e a doentes mentais (este no campo da saúde), além de Centros de Convivência de Idosos, ganham importância fundamental.
Os CEMASIs representaram a proposta de integrar, espacialmente, o atendimento às famílias pobres e seus membros. Tiveram um papel importantíssimo na política de desenvolvimento social, por reunirem, em uma mesma unidade, programas para a promoção da unidade familiar como um todo e para seus membros, em variadas etapas do ciclo de vida.
Nos CEMASIs havia creches de horário integral, programas de reforço escolar para crianças e adolescentes, centros da juventude e centros de convivência de idosos. Com uma única equipe de direção, havia a possibilidade concreta de se promover a articulação entre estes programas e propiciar a convivência intergeracional. Constituíam também um espaço para formação cidadã, por meio da atuação de usuários, especialmente os Agentes Jovens de Desenvolvimento Social na governança da unidade.
Em alguns CEMASIs funcionavam também Coordenações Regionais de Assistência Social ou Conselhos Tutelares, reunindo, espacialmente, programas e serviços, constituintes da Rede de Proteção Social, tecida pela SMDS para enfrentar o problema da pobreza e da desigualdade na cidade do Rio de Janeiro.
No 15º e último episódio da Temporada 2, vamos tratar das mudanças ocorridas com a saída de Cesar Maia e o início do governo Conde. Falaremos também sobre a Feira Rio Social, que acabou funcionando como evento-marco do final de minha gestão na SMDS e dos diferentes tipos de reconhecimento, em função do trabalho realizado. Não percam!
Wanda venho acompanhado todo seu trabalho na medida do possível. Parabenizo você e toda a sua equipe nessa trajetória da Educação das Crianças e dos Adolescentes para a construção de um Mundo Melhor de Amor ao Próximo. Parabéns.
Como deu certo!
Parabéns.