Wanda Engel
Por WandaEngel -
Este deveria ter sido o primeiro episódio da primeira temporada, mas resolvi subverter a ordem cronológica, iniciando o relato de minha trajetória pela experiênciano Governo Federal.Finda esta parte, devo dar um salto para o passado, procurando identificar as raízes de minha formação, especialmente o contexto no qual foi moldada minha primeira visão de mundo. Aí, sem dúvida, pode ser encontrada, a matriz de minha posterior atuação como profissional.
Nasci em junho de 1944, em plena Guerra Mundial, no Méier, cidade do Rio de Janeiro. O Méier é um subúrbio da Rede Ferroviária Central do Brasil, dividido em duas partes pela linha férrea: o lado de cá e o lado de lá. Nasci no lado de cá, considerado “o melhor”, onde predominavam pequenas casas de dois ou três quartos, habitadas por famílias de classe média. A minha casa, alugada, era de dois quartos.
Minha família era composta por meu pai alemão, nascido em Brandemburgo, cuja família tinha imigrado após a primeira guerra mundial; minha mãe e minha avó materna, de origem paraense, com ancestrais indígenas, além de minha irmã, quatro anos mais velha que eu.
Meu pai, um mecânico especializado na montagem e assistência técnica a máquinas importadas da Alemanha para a indústria de couro do Rio de Janeiro, era o único mantenedor da família. Minha mãe era “do lar”. Nenhum deles tinha escolaridade além da quarta série do ensino fundamental.
Apesar de vivermos como classe média, a vida ia correndo sem tropeços, até que…
Quando eu tinha aproximadamente cinco anos, nossa casa alugada foi vendida e, como retardamos o processo de aluguel de uma outra, acabamos sendo despejados.
É impressionante como fatos marcantes ficam nítidos em nossa memória. Eu, ainda bem pequena, me lembro perfeitamente do dia do despejo, especialmente do caminhão da prefeitura chegando e retirando todas as nossas coisas. A sala ficou vazia e parecia enorme. Resolvi jogar bolinha de gude de um canto a outro do recinto. Minha avó, vendo aquilo, comentou: Bom ser criança e não ter a dimensão da tragédia. E eu pensando: Ela acha que eu não entendo o que está acontecendo!
Sempre que vejo alguma família, desalojada por motivos variados, lembro do dia em que eu vivi o drama do despejo.
Como consequência, tivemos de alugar uma casa bem mais cara, o que obrigou meu pai a dobrar sua carga de trabalho. Daí para o estresse virar uma diabete e a consequente debilidade abrir caminho para a tuberculose, foi um pulo.
Meu avô alemão, que a esta altura era mecânico chefe da Empresa de Águas São Lourenço, entra em cena, interna meu pai em um sanatório em Campos do Jordão, mas exige que a família se mude para Minas Gerais.
Ocorre que minha irmã já havia conseguido a proeza de passar, numa seleção apertadíssima, para uma das melhores escolas públicas do Rio de Janeiro, o Instituto de Educação.
Minha mãe avaliou as consequências da proposta e se negou a desistir do que considerava ser um futuro promissor para uma mulher daquela época: tornar-se professora.
Valorizar a educação e o esforço, parece ser de fundamental importância em um processo de socialização, que visa encaminhar as novas gerações para o caminho da “educação/trabalho”.
Políticas voltadas para famílias pobres, como o Bolsa Família, que têm como condicionalidade a participação da mãe, em um processo de acompanhamento e apoio ao desenvolvimento familiar, deveriam incluir um componente socioeducativo, focado, entre outros temas, no valor da educação. Parece claro que a saída sustentável de uma situação de pobreza demanda que todos os membros mais jovens das famílias pobres concluam sua educação básica.
Estabelece-se, então, o conflito entre as “mulheres guerreiras amazônicas” (minha mãe e minha avó) e o “poder germânico” (meu avô).
A decisão acaba sendo a de permanecer no Rio e, como consequência, ficaram as quatro mulheres contando apenas com um salário mínimo, referente à pensão de meu pai. Com renda per capita de um quarto de salário mínimo, entramos na faixa da extrema pobreza.
À época, a previdência social era organizada por categoria profissional e a do meu pai era o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC).
Apesar de não disporem de escolaridade formal, as “guerreiras amazônicas” tinham o que podemos chamar hoje de “capital de relações sociais”.
Minha mãe descolou, com o apoio de uma amiga, um apartamento no Conjunto Residencial do IAPC de Cachambi (um Méier para lá do lado de lá), que correspondia à continuação da favela do Jacarezinho. O aluguel, de um salário mínimo, consumia a totalidade da pensão de meu pai. Evidentemente ficamos devendo muitos meses de aluguel.
É interessante notar que existia, à época, uma política habitacional que garantia a moradia, a preços subsidiados, para famílias de trabalhadores pobres, por meio de seus sistemas previdenciários corporativos: os institutos de pensão. No Rio de Janeiro multiplicaram-se, na década de 50, conjuntos residenciais de comerciários (IAPC), industriários (IAPI), marítimos (IAPM) e até bancários e jornalistas. Sem estas opções, reforçou-se o processo de proliferação das favelas.
A situação seria insustentável se minha avó, que era “cabo eleitoral” de um vereador, não tivesse conseguido um emprego para minha mãe na Prefeitura do Rio, na função de atendente.
Tecnicamente, a função seria de servente, mas minha mãe conseguiu ser lotada na mesma escola onde minha irmã estudava, o Instituto de Educação, e ser designada para atuar no núcleo de recursos humanos.
Minha avó, além de cuidar da casa, costurava para completar a renda.
Este universo familiar, predominantemente feminino, é muito comum entre famílias pobres. Por motivos variados, relacionados a doença ou abandono, a figura masculina é a grande ausente. Numa família ampliada, chefiada por mulheres, sobressai a figura da avó, muitas vezes responsável pelo cuidado dos netos de diferentes filhos.
As políticas voltadas para estas famílias deveriam ter uma atenção especial para com estas mulheres que necessitam ser apoiadas em seu papel de educadoras e cuidadoras.
Eu dei muita sorte com a minha avó. Filha de uma família muito pobre, de treze irmãs, nascida na cidade de Salinópolis no Pará, minha avó migrou com as irmãs para Belém. Não tenho notícia de sua escolaridade formal, mas de sua participação ativa em movimentos culturais (tocava flauta doce) e políticos de Belém. Por outro lado, o casamento com um carioca, expulso da Escola Naval, por participar de grupos revoltosos, contribuiu muito para que ela construísse uma sólida base cultural.
Para mim, a mais forte lembrança de minha avó eram as “leituras de antes de dormir”. Ao invés de histórias infantis, lia capítulos de clássicos, como Victor Hugo. Ainda hoje me lembro de Jean Valjean, Cosette e Javer, como meus personagens favoritos.
Em resumo, minha avó era de família pobre, com pouca escolaridade, mas com uma rica vivência intelectual e política.
O fato de trabalhar diretamente com os professores, aliado a uma clareza sobre a importância da educação como instrumento de mobilidade social, levaram minha mãe a retomar os estudos.
A cada grau vencido, através do Ensino Supletivo, correspondia uma ascensão no serviço público. De atendente a auxiliar de recursos humanos, daí a Chefe do Núcleo de Pessoal, a Chefe de Administração do Instituto de Educação e a Chefe de Administração da Divisão de Ensino Normal. Na época da aposentadoria, ocupava o cargo de Diretora Geral de Administração do IASERJ (Instituto de Assistência dos Servidores do Estado).
Era uma das pessoas mais alegres e bem humoradas que conheci. Gostava de cantar, dançar e festejar, especialmente com uma cervejinha, nunca consumida “antes de meio-dia”.
Minha família me fazia acreditar que eu fazia parte de uma linhagem de “mulheres guerreiras amazônicas” que não podiam deixar-se abater por nenhum “tropeço” e que tinham de encarnar a força dos rios e das florestas, na defesa de suas crenças e valores. Tudo isto sem nunca perder o humor.
Apesar da penúria, tenho boas lembranças de minha infância nesta fase. Nos prédios de três andares sem elevador, moravam muitas crianças de minha idade e as brincadeiras de rua eram muito divertidas.
Meus vizinhos, incluíam desde um vendedor de amendoim em trens da Central do Brasil, até pequenos funcionários do comércio, e demonstravam um forte sentimento comunitário que não encontrei em outros bairros em que vivi.
Após alguns anos de sanatório, meu pai retornou para nosso convívio. Sua saúde ainda era muito frágil, por conta de uma diabete que não conseguia controlar. Inúmeras vezes encontrei, ao chegar da escola, uma ambulância na porta do prédio, destinada a atender meu pai. Com a inexistência de um elevador, era necessário colocá-lo em uma cadeira e descer três andares, carregando um homem de um metro e oitenta. Para isto, sempre contamos com a ajuda de vizinhos.
Apesar destes perrengues, tínhamos uma vida bem animada. Nossos domingos eram frequentemente destinados a almoços com parentes e amigos. Estes eventos aconteciam ora no Leblon, ora em Honório Gurgel.
Em um pequeno apartamento do Leblon, meu tio Dalcídio Jurandir, considerado um dos maiores escritores amazônicos, reunia intelectuais comunistas para longas discussões políticas, regadas a muita cachaça, poesia, música e dança.
Em Honório Gurgel, subúrbio longínquo da zona norte do Rio, mais de uma dezena de primos disputavam um único balanço e uma única bicicleta velha. Isto gerava brigas homéricas, das quais os adultos não podiam, sob nenhuma hipótese, tomar conhecimento.
Ambos destinos requeriam longas viagens de ônibus, nos quais, em dias de verão, se enfrentava um calor infernal. Mas valia a pena!
Enquanto isto, minha irmã seguia sua escolaridade no Instituto de Educação e eu ia completando meu primário (Ensino Fundamental I) em uma escola pública do Méier chamada República do Peru.
O sonho acalentado, durante todo este tempo, era o de me juntar a minha irmã e a minha mãe, ingressando no Instituto de Educação, o que me parecia ser a garantia de um “futuro promissor”.
Eu sempre me perguntei o que teria acontecido com meus vizinhos extremamente pobres do IAPC de Cachambi, como a família do vendedor de amendoim, na tentativa de entender minha própria mobilidade social. Há quem diga que o destino de um indivíduo, no Brasil, depende mais do CEP em que nasceu do que do DNA que herdou de seus ancestrais.
Visto que o CEP era o mesmo, o que fez a diferença? Um potente DNA? Realmente não acredito nisto. Meus amigos muito pobres demostravam ser tão inteligentes quanto eu. Positivamente não era uma questão de habilidades ou competências.
A dúvida ainda me persegue, mas a hipótese mais plausível me parece estar ligada a questões culturais de minha família, que associavam o apreço à disciplina, ao esforço e ao método, dos imigrantes alemães, com o valor da educação, da cultura e de uma visão de mundo mais holística, por parte das “guerreiras amazônicas”. Isto associado, porque não dizer, a uma pitada de sorte!
Fato é que o acesso “àquela escola” representou o início de um processo de ascensão social, fundamental para que minha família iniciasse, de forma sustentável, a saída daquela situação de pobreza.
No próximo episódio, o tema é o Instituto de Educação do Rio de Janeiro e seu papel, absolutamente fundamental em minha formação pessoal e profissional. Ainda hoje me admira a qualidade desta escola pública destinada à formação de professoras de ensino fundamental, mas que conseguia o milagre de formatar a “alma” de verdadeiras educadoras.
Deixe um comentário